A voz cantada do anonimato
Lisboa é uma cidade muito própria, onde a pronúncia se distingue mas, acima de tudo, onde estão implantadas as mais importantes estruturas do país. Esse é o papel de uma capital, no entanto, Lisboa é muito mais do que isso para a Rita: foi a primeira casa que conheceu e foi onde cresceu e estudou, num percurso que, de alguma maneira, a fez tropeçar no mundo artístico.
Nessa altura, quando Lisboa ainda era o único mundo que a Rita conhecia, já o desenho e a música eram os grandes motores da sua criatividade. Não tardou muito até se tornarem autênticas paixões, que acabaram por ajudar a que a Rita traçasse um caminho muito pouco convencional. A rebeldia que conhece, e que nunca tentou domar até aos dias de hoje, é contra o conformismo e a rotina. Uns podem achar que é um espírito ingénuo, afogado em falácias do carpe diem, mas a verdade pode ser diferente e muito mais simples: talvez a Rita não conheça outra forma de viver. Vai andando por aí, enquanto se descobre e redescobre, a viver do seu “auto-emprego”, como lhe chama, e a partilhar as notas que escolhe cantar, usando a voz que já nasceu com ela.
Aquela voz é inata, não foi ensinada, e se às vezes pode parecer fora de tom é apenas a ousadia que dela faz parte. Pouco rouca e extremamente feminina, não pede propriamente licença para entrar e arrebata, por completo, o tímpano mais desprevenido. A plateia vê-se ali perante a escolha de abandonar a pequena sala de espetáculos ou de permanecer sentada, à espera de mais notas desconhecidas. Aquele instrumento pequeno que ela segura é, ali, a sua única companhia para além do microfone pousado à sua frente.
No meio da energia que a Rita transmite quando está em cima de palco, não dá para adivinhar que, pese embora o seu físico angelical, haja qualquer tipo de timidez particular que a caracterize. Essa é uma ideia errada, que chega ao público em forma de arte, e que pode enganar o melhor dos observadores. Estranhamente, a Rita encontra um conforto aconchegante no anonimato e quase que desconfia daqueles que a cumprimentam na rua pelo seu trabalho.
Longe vai o tempo em que Lisboa era a única casa que a Rita conhecia, mas não tão longe está a menina desconhecida que foi a vida toda e que gosta de ser ainda hoje. Canta atualmente com a mesma intenção com que cantava antes, em casa, sem plateia. Na verdade, a Rita quer o que toda a gente quer: felicidade. Para isso, dispensa grandes malabarismos ou extravagâncias e, secretamente, ainda deseja que ninguém olhe para ela quando entra num espaço cheio de gente.
“Como se não tivesse nenhuma intenção a não ser a de conversar à toa” (Tolstói, em O Diabo)
Uma conversa descomprometida, que congela o tempo e deixa fluir uma amizade de longos anos, dos quais os comboios, os autocarros e os aviões sempre fizeram parte, é difícil de manter. Para além do desafio natural que uma amizade sólida representa, com a Rita existe o acréscimo da distância, que se prolonga por meses, quase todos os anos. Em muitas das viagens, o Pedro gostaria de poder acompanhá-la, mas as rotinas que diferenciam os seus estilos de vida, ou a falta delas, não permite essa compatibilidade. Mais do que isso, a Rita prefere ir sozinha, não por dispensar a companhia deste amigo, mas porque quando parte não está a ir para fora. Na verdade, a Rita parte para dentro de si mesma em cada viagem, por mais cliché que possa soar, e leva o seu pequeno companheiro de muitas partidas e chegadas: o ukulele.
Para quem conhece a música da Rita, a sonoridade do ukulele deixou de ser característica dele para passar a ser dela. A acústica tão própria do pequeno instrumento é a bengala que escolheu para fazer as suas interpretações de músicas das quais pouca gente se lembra: pop e jazz dos anos 20, folk russo e pop dos anos 60. No entanto, o multiculturalismo das suas influências permitem-lhe usar uma bagagem invejável de inspiração, que também se desdobra em composições mais experimentais, desde o acústico e intimista ao eletrónico.
Mais importante do que a música que faz, é a forma como a Rita vive da e para a sua arte (e também para a arte dos outros): a estabilidade geográfica é algo que mal conhece nos dias de hoje e ter casa móvel é uma das características que melhor define o seu estilo de vida e a sua crença no desprendimento. É essa a sua essência: a simbiose entre a artista e a pessoa, que encontra na viagem e no enriquecimento cultural a inspiração para criar e para viver. Assim, as pessoas que conhece nos arredores do mundo tornam-se, facilmente, muito mais do que convencionais colaboradores; passam rapidamente a amigos ou a companhias de longas conversas que acabam por permitir que se construa, de novo, uma casa para a Rita. As suas atípicas viagens de trabalho, que faz por opção, são antes a forma que adotou para viver: livre, no momento, pronta para o lado bom e mau do inesperado, sem nunca se render ao descontrolo e à falta de disciplina.
Quando não está a atuar ou a criar, a Rita gosta imenso de ver filmes e considera ser esse um dos seus principais hobbies: Jim Jarmusch e Billy Wilder são dois dos seus realizadores favoritos. No entanto, para além do cinema, também a literatura faz parte da sua lista de interesses. Decidiu, recentemente, recuperar alguns autores russos e começou com um dos mais influentes: Leon Tolstói. Há poucas semanas lia O Diabo, um livro que conta a estória de um recém casado que se vê obrigado a escolher entre matar a sua amante ou a sua esposa. Adorou.
A timidez encantadora de uma viajante com destino
Os destinos mudam, alguns são mais próximos, outros mais distantes, mas o sentido nunca se perde. A viagem é uma redescoberta, efémera para alguns, mas certamente constante para a Rita, que nos faz acreditar que é possível estar em casa em qualquer parte do mundo. O que basta é importarmo-nos o suficiente para conhecer as pessoas que nos rodeiam e que, acreditando ou não nas mesmas coisas nas quais acreditamos, falando ou não a mesma língua que nós, são fascinantes na sua maneira muito própria.
Com o seu ukulele, a Rita transforma-se numa artista sem fronteiras. A timidez e o gosto pelo anonimato, que são ultrapassados apenas em palco quando a arte fala mais alto, não são obstáculo. O dinamismo cultural da sua música é também reflexo do dinamismo pessoal com que enfrenta cada viagem, pronta para criar laços, novas parcerias artísticas, amizades, oportunidades, mais datas para concertos e memórias de outra casa conquistada.
Explora-se, assim, um luxo que pouca gente tem. Este “luxo” não é, de todo, um capricho económico de uma rapariga de elite; é, antes, um luxo de espírito, uma característica apaixonante que transforma a menina tímida e introvertida num sucesso social, capaz de morar em qualquer lugar, desprendida, independente, autónoma. Mesmo assim, conta, neste momento, com as amizades brasileiras e, outrora, contou também com as polacas, as estadunidenses, as sérvias, entre muitas outras. Se amanhã o destino voltar a ser um destes, a casa ainda lá vai estar, intacta, pronta para retomar as estórias, os risos e as conversas que há tão pouco tempo ali estiveram, sentadas naquele sofá.
A Rita de quem os amigos falam é capaz de marcar a vida de cada pessoa que com ela partilha uma conversa, um café, uns e-mails ou um palco. Talvez saiba disfarçar muito bem a sua timidez, ou, se calhar, é uma timidez diferente… Encantadora, quem sabe? O que se sabe é que a Rita nunca vai parar. Por mais discreto que o seu percurso seja, a juventude que os 28 anos ainda lhe garantem foram bem aproveitados. A próxima paragem é Edinburgo, no Fringe Festival, o maior festival de artes de rua do mundo. Entretanto, também fica a certeza de que a carreira promissora da Rita trará um novo álbum em breve e, até lá, resta a esperança em como a vamos encontrar por aí algures, a cantar num idioma qualquer.
(Nota: o perfil jornalístico exposto foi escrito no ano de 2013)