Alejandro G. Iñárritu ficou célebre pelos seus filmes de estrutura mosaico, ou de narrativas entrelaçadas, possivelmente concretizada com o melhor uso da montagem. De certa forma, o cineasta mexicano, agora “entranhado” em Hollywood desde Amores Perros, conquistou e dinamizou o chamado cinema mosaico, cujas referências foram mais tarde invocadas por outros cineastas que entregaram o estilo narrativo à pura rotina cinematográfica. Talvez por isso, sob esse rótulo, Biutiful (2010) foi o seu filme-revolta, um escape aos seus lugares-comuns e o abraçar de uma estrutura, não clássica, mas de realismo formal, também este injectado com toda a sua pujança nas diferentes visões cinematográficas. Agora partimos com “algo completamente diferente”, Birdman, o suposto “soco no estômago” de um cineasta que se indiciava acorrentado a um estilo e que na ausência deste, exibiria uma desfigurada pobreza espirituosa. Pois bem, preparamo-nos assim para entrar e fugir à sua capacidade de filmar a dor como uma missão socorro. Iñarritu larga o realismo cruel das suas anteriores obras, a sua trilogia dor é “enviada” para anos-luz do seu ser e ao espectador dá o embate com o artificialismo do teatro.
A história é alusiva a este termo, à transição de olhares e estilos, aqui somos remetidos a um actor de Hollywood, Riggan Thomson (Michael Keaton), famoso por ter vestido o fato de super-herói, o homónimo, num franchising próprio há uns anos. Com o tempo, Thomson ficou descredibilizado como profissional e esquecido pelas novas gerações. Determinado em perseguir e atingir o prestígio, envolve-se num ambicioso projecto de protagonizar uma peça da Broadway. Peça essa (What We Talk About When We Talk About Love, de Raymond Carver), que antes da sua derradeira estreia apresenta problemas de toda a espécie, entre os quais a vinda de um novo actor coadjuvante, o imprevisível Mike Shiner (Edward Norton), a mais temida crítica de Nova Iorque que ameaça “acabar” com o espectáculo apenas com um artigo e o confronto intrínseco entre Riggan e o seu alter-ego.
Primeiro, é evidente encontrar elos entre esta personagem e o actor Michael Keaton, não apenas pelo facto de ter vestido há anos a “pele” de Batman nos dois bem-sucedidos de Tim Burton, mas sim pelo seu constante “impacto” com o progressivo esquecimento e desleixo da indústria. Basta apenas ver a quantidade/qualidade dos papeis oferecidos ao actor e a forma como é e será sempre relembrado por poucos como o “Cavaleiro das Trevas” da DC Comics. Nesse aspecto, Iñarritu poderá ser o seu Raymond Carver, o holofote para o seu reconhecimento. A sua entrega é íntima e, com isso, pessoal, um ser real entre o artificialismo propositadamente invocado pelo cineasta. Enquanto os seus anteriores filmes-mosaicos eram (sem cair na ingratidão) uma questão de edição, em Birdman sentimos estar no interior de um jogo proposto pelo realizador, um filme desconstruído por falsos planos-sequência, conjugando os mesmos “jogos” jogados por um Antonioni, ou um Sokurov. Porém,dentro desse jogo de aparências e de influências às ilusões dramaturgas e ao universo do improviso instantâneo, somos inseridos num seio de uma constante guerra a tudo e todos.
Iñarritu utiliza os seus cenários e situações para levar ao extremo a sua crítica, aliás ninguém se encontra a salvo neste tiroteio incendiário: arte, cinema, teatro, mediatismo, órgãos de comunicação, a crítica e Hollywood são alvos de uma elaborada sentença à morte. Enquanto dispara as suas ácidas críticas sem dó nem piedade, o espectador é assim abrangido pela inesperada virtude da ignorância. Sorrimos solenemente de espírito pacífico e sem rodeios, ao mesmo tempo que o realizador (com o auxílio de um argumento escrito a oito mãos) nos achincalha sem a nossa mínima percepção. “É isto que faz o vosso sangue vibrar” aclama o alter-ego Birdman, olhando-nos directamente nos olhos. A partir deste momento, o espectador reconhece fazer parte da fita, mas este ainda é “acamado” nas inúmeras camadas da ignorância. No final disto tudo, o grande alvo de crítica somos nós e nós contribuímos para o espectáculo exposto. Agora a questão é se isso é um elemento mau. Não, é simplesmente a “chapada” aceite, enquanto nos miramos em frente ao espelho. Somos as “moscas que comem merda”, como é citado numa das cenas, somos os “despreocupados e os iletrados” por quem as personagens correm e, por fim, somos nós os contributos para tendências culturais, sociais e não o mundo em nosso redor. Porém, continuamos a esconder-nos sob capas e mais capas. Keaton escondeu-se numa durante muito tempo, agora em Birdman poderá ser o seu momento de libertação.
Despido de ingenuidade, neste “conto” nada fabulista, Iñarritu é implacável na sua realização. Para além disso, é um excelente director de actores, onde lhes consegue “arrancar” prestações viscerais e insinuantes. Fora o protagonista (o mais provável vencedor ao Óscar de Melhor Actor), Edward Norton tem a compensação de uma grande carreira “deitada fora”, Emma Stone veste a sua personagem mais singular e Naomi Watts é um suporte de grande amplitude. Birdman é uma obra misteriosa, transcendente que nos levará a um novo trilho, uma nova fase na carreira de Iñarritu. Sim, sem qualquer dúvida, é um grande filme.
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