Cassilda, o corpo

Velha, enrugada e escondida, ninguém diria que aquela mulher tinha sido motivo de inveja e de raiva para tanta gente. Nos seus tempos gloriosos, quando o corpo chamava a atenção de quem passava, vendia-a pelo preço que muito bem entendia. As carnes rijas e bem posicionadas, atraíam os olhos de homens e de mulheres, já que a fonte da juventude parecia habitar em si.

Agora vende jornais numa banca reduzida, tal como o tempo que lhe deve restar. Já perdeu a noção dos anos, que os números são para contar o dinheiro que deve chegar para sobreviver. Vive numa casa escurecida, tal como ela, onde a luz parece ter vergonha de penetrar. Tem janelas, mas as mesmas dão para um saguão que há muito perdeu a graça e a vontade de ser limpo.

Uma sala curta, que não precisa de mais, onde a televisão ainda ganha lugar de relevo, é o seu poiso habitual. As noites são muito compridas e precisa de companhia para as malditas insónias que a assolam todos os meses. Há quem lhe diga que é de ser velha ou até mesmo de ter sido desejada. O sono não quer saber isso e não vem para lhe dar descanso.

O quarto é o santuário que lhe recorda os tempos áureos de mulher desejada e muito atraente. As fotografias não enganam e Cassilda, escrito com os dois esses, foi mulher de corpo perfeito, como forma de levar à loucura muitos dos que a conheceram. Por aquelas mãos e boca, passaram tantos conhecidos da alta sociedade como anónimos. Ela sabia como resolver qualquer questão. Uma espécie de terapia que tinha resultados garantidos.

A banca nada tem de interessante. É uma venda de jornais que acrescenta algumas guloseimas para os mais pequenos. Ainda há quem gosta de ler em papel as notícias que todos ouvem. Tem alguns jornais reservados, para o senhor doutor ou engenheiro, para a menina que está a estudar ou até mesmo para as senhoras dos cafés. É a forma segura para manter clientes e esticar vidas que são pequenas.

Depois há o mundo das revistas. Cor-de-rosa, como se diz. Essas são as que mais vendem, as que contam segredos que todos conhecem e que mostram casas de invejar. Ou ainda férias pagas por agências que precisam de muito facturar. Corpos belos e jovens que se cuidam e moldam para manter uma impossível juventude até depois dos cinquenta. Para ela são bonecos que nada lhe dizem. Ou melhor, é um ganha-pão honesto que a mantém ocupada.

Nos momentos de quebra de vendas gosta de dar um dedinho de conversa. Os olhos perderam a cor e os cabelos são alvos, mas a memória está tão cheia de cor como sempre. Recorda-se de nomes, de detalhes escabrosos e ainda de curiosidades que fazem rir. Um dos seus clientes assíduos, homem de fato e gravata, chefe de família, benzia-se antes de se “enroscar na minha menina”. Outro, administrador de uma empresa conhecida, gostava que ela recitasse a tabuada antes do “acto”.

Nunca falha com as encomendas e as entregas são feitas atempadamente. Usa o chamado “livro de mercearia”, do deve e do haver, para se orientar com os pagamentos. Antes, quando era fresca e o corpo estava com tudo no sítio, sabia de cor quanto tinha e quando podia gastar. Soube juntar algum para os dias “de chuva” que seriam, com toda a certeza, mais longos que os de luz. Sabe os nomes dos clientes certos e tem a palavra certa para cada um.

Curiosamente é uma espécie de psicóloga que vai ouvindo quem pára junto a si e lhe vai desfiando o rosário das desgraças. Não critica, apenas ouve, a arte que se está a matar. Sabe de tudo, mas não conta. Ficou-lhe, das muitas confidências ouvidas aos clientes, uma arma poderosa que guardou durante anos e que lhe permitiu continuar a vender-se, mesmo quando o corpo, aquela delícia de babar, começou a fraquejar.

Não se queixa da vida que tem nem da que teve. Sabe quem foi e nunca teve sonhos de grandeza. Juntou o que entendeu necessário e não se arrepende. Tudo vale menos a velhice, que é um fardo pesado e sem cor, tal como ela agora, que espera um dia não mais acordar. A cabeça ainda está boa e os olhos insistem em continuar a ver. Tem sorte de ser como é, sem dores nem arrependimentos.

Cassilda foi a mulher mais sexualizada que muitos conheceram. Sabia todos os segredos e truques para que o seu par soubesse funcionar. Deu alegrias a tantos e satisfações a muitos mais. Só o tempo não a gostou e gastou-a como se fosse uma folha velha de papel. Está parda, mas lúcida e sabe como se governar. Amarrotada de cara e encardida de corpo, ao lhe perguntar se é feliz, mostra os dentes a rir e responde que são coisas de contos de fadas e de novelas. Afinal o corpo soube também usar a cabeça.

Vendo bem, afinal o que é isso da felicidade? Cassilda vende jornais e revistas, que mostram a felicidade alheia comprada com viagens, carros e casas que, sem quem saiba como se sentir, ficam sem préstimo algum. Quem não tem o que não precisa, sabe sempre como vingar.

Num lugar de destaque, muito amarelecida, está uma revista antiga, daquelas que faziam companhia a homens solitários aos fins de semana, onde uma mulher espampanante, de seios opulentos e altivos, com olhar sensual e bem convidativo, exibia as suas formas deliciosas e inacessíveis. Lia-se, em letras gordas em destaque: Cassilda, o corpo.

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