Os raios de sol entram pelo vidro sujo em câmara lenta. Tocam vagarosamente em tudo: no pó da mesa-de-cabeceira, nas fotos queimadas e baças, na ausência.
A mãe abre a porta do quarto várias vezes por dia. Roda a maçaneta e mancha-a com todas as perguntas que lhe tingem o corpo, que não saem por mais que ela o esfregue nem por mais que ela imagine respostas. A luz toca-lhe na mágoa que tem dentro dos olhos. Pára o tempo no quarto. Dá-lhe a certeza de que ela existe.
O quarto de uma criança que não passou da infância. Os brinquedos por todo o lado – um carrinho de madeira com um cordel, um pião, berlindes, desenhos e fotografias em todas as paredes para esconder a tristeza que faz lá bolor.
Ela senta-se na cama. Abre as suas memórias de pálpebras fechadas. Retira aquelas de que precisa:
O seu filho único, com dez anos, a andar numa bicicleta oferecida com esforço pelo pai. Os amigos a correr atrás, arrastando latas para fazer barulho, o barulho como medidor da felicidade, camisolas com riscas verdes e sorrisos onde cabia o mundo. Ele a dizer adeus, adeus, adeus, enquanto se afasta livre e dono da coragem em duas rodas.
Adeus, filho, adeus, incentiva ela.
Algumas das suas memórias estão quase imaculadas. Toca nelas só com a polpa dos dedos. Não se pode enganar e ir à parte mais escura, mais escondida, onde deixou os pedaços das lembranças que queria esquecer. Se roça sequer nelas, não sabe depois impedir que fujam e que se colem ao céu da boca, aos dentes, que lhe dêem um amargo eterno à vida.
Sorri:
A forma como ele pegava no garfo. Os seus dentes tortos que tornavam o seu sorriso no mais lindo que ela conhecia. O cheiro do seu cabelo, indomado e espantado com os encantamentos da infância. A sua cor preferida. A sua comida favorita. Aquela fisga que um amigo lhe emprestou aos onze anos e com a qual “um dia vamos poder matar pretos”.
Não, essa não.
Essa não.
Sente as outras lembranças – aquelas que são retalhos que ela própria rasgou e coseu e reformulou – a quererem sair. Sente-as a vibrar.
O seu filho, homem feito, a cuspir denúncias falsas sobre amigos e vizinhos. Os seus olhos brilhantes quando decidiu ir para a guerra. A desejar, mais do que tudo, “esfolar aqueles pretos nojentos”. Ela a pensar que não sabia quem era o filho, que ele estava avariado, a não saber como arranjá-lo. Onde tinha ficado a criança alegre? A boca deles era uma jaula com palavras que não podiam soltar, a casa deles um aquário, ela e o marido a flutuarem constantemente no medo.
Essas não. Essas não.
A notícia da morte do filho “ao serviço do país”. O caixão fechado porque sabia-se lá que partes do corpo tinham conseguido recuperar. A lápide dele. Ele para sempre preso debaixo de terra, inalcançável, fragmentos dele num continente desconhecido. E eles despedaçados entre o alívio e a dor.
Essas não, por favor, essas não!
Tapa os ouvidos para as empurrar para o fundo de novo. Engole com esforço a culpa.
Abre os olhos. Guarda as memórias todas de novo dentro do peito. Levanta-se para sair do quarto que ela própria redecorou quando ele morreu. Da realidade que ela redecorou quando ele morreu. Era ali que ela tinha decidido guardar a criança alegre. Ali, o filho deles não tinha saído da doçura dos dez anos. Da felicidade dos dez anos. Da inocência dos dez anos. Não tinha crescido, não tinha sentido as raízes do ódio. Naquele quarto todos eles estavam a salvo. Escangalhados, presos, desfeitos. Mas a salvo.
Adeus, filho, adeus.