Mergulhar no Desconhecido

Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento…

– Clarice Lispector

Esta é uma época de pensamentos perigosos em que vivemos cada vez mais para nós e para aqueles que nos rodeiam e a quem queremos, por uma qualquer razão, agradar… Esta é uma verdade, para mim, difícil de entender.

Muitas vezes, também eu sou assim, penso em mim e nos meus, esqueço todos aqueles que se vêm num qualquer cenário de guerra e que de repente tem que abandonar tudo, tomar uns poucos haveres, se houver tempo para tanto, e colocar-se em fuga. Muitas vezes sem saber para onde.

Estes tempos que hoje se vivem são assustadoramente egoístas, diria mesmo temerários, porque todos pensam excessivamente em si e no que é a sua vontade e o seu desejo, vivendo na redoma que é o nosso país, tão periférico e, também por isso, desviado das grandes desgraças que assolam o universo e de que os jornalistas dão conta todos os dias nos noticiários.

De acordo com os dados disponibilizados pelo Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), em 2017, o número de pessoas forçadas a deslocar-se da sua terra natal era de 25,4 milhões. Atravessaram fronteiras e acabaram por se tornar refugiados.

Melhor ou pior, todos conhecemos o conceito de refugiado, mas a Wikipédia explica bem a noção de refugiado: “é a pessoa que de acordo com fundados temores de perseguição, em face da sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, se encontra fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao mesmo, ou devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outros países.”

Pergunto: aceitamos a diferença do outro e gostamos de ver pessoas de outra classe social ou de outra etnia perto das nossas casas? Sinceramente. Não é preciso responder…

O que é um facto e aquilo em que eu acredito é que pessoas boas e más existem em todas as etnias, classes socais e em qualquer realidade. São as pessoas e a sua condição que fazem a envolvência, ou é o meio ambiente em que vivem que acaba por transformar as pessoas em boas ou más? Até que ponto conseguimos ter a perceção do condicionamento das nossas escolhas, em face do que consideramos poder vir a ser aceite, ou não, pelos que nos rodeiam?

Somos nós escravos do modelo de sociedade que estereotipa o que é bonito, belo e aceitável ou não, aos olhos dos outros?

Como não ficar profundamente preocupada com o tratamento dado aos migrantes e, nomeadamente, com o discurso público que ouvimos estes dias, por exemplo, sobre a migração nos Estados Unidos da América. Como podemos perceber ou sequer entender a morte das crianças da Guatemala que estavam sob custódia de autoridades dos EUA? E esta é apenas uma de entre algumas situações que chegam ao conhecimento do público. Quantos milhares de outras situações similares existem por cada canto do universo?

Muitas vezes questiono-me sobre o porquê de nos vermos envolvidos neste gigantesco manto de indiferença em relação ao que nos rodeia. Esta sensação de alheamento começa por se fazer sentir de uma forma muito ténue, tão imperceptível que quase nem percebemos o quanto estamos, por vezes, a escoriar aqueles que amamos, sejam eles os nosso familiares e/ou amigos, ou mesmo qualquer pessoa que connosco se cruza na rua.

Tenho uma proposta excelente para se equacionar a resolução destas questões da indiferença – chama-se Compaixão. Esta palavra de origem latina significa “sofrer com”. Ou seja, junto do outro, sentindo o sofrimento alheio, pode ser uma solução viável e possível de utilizar. A compaixão pode servir de linha orientadora para desviar os nossos pensamentos por vezes tão perigosos, porque nos colocam em patamares distintos daqueles que são mais fracos e dos que sofrem na pele a dor de serem impelidos para qualquer lugar.

Devemos ser compassivos e perceber o sentimento do outro que foi lançado na rua, não por vontade própria, mas pelo desígnio de quem manda no mundo, razões políticas e/ou religiosas, pouco importa. O que realmente é válido é que os que são apanhados nestas redes de quem governa o mundo, não tem opinião, nem a compaixão daqueles que não sendo confrontados com essa realidade, poderiam ser um auxílio tão precioso, mas no entanto, quase inexistente.

Quem hoje é indiferente face à realidade de quem se refugia e não consegue colocar-se no lugar do outro deve trabalhar a habilidade de imaginar a dor sentida por quem se vê arrastado para estas situações. Esta é uma sensação que carrega em si um tremendo potencial transformador, criativo, revolucionário mesmo.

A compaixão é uma virtude que deve ser cultivada e fomentada. E, importa não esquecer que a palavra virtude tem a ver com poder. Quanto mais virtude, mais poder. E esse poder é, fundamentalmente, a habilidade que exercemos sobre nós próprios para sermos compassivos para com os mais fracos.

A compaixão é, por isso, universal e assumidamente moral, justamente por não se preocupar com a moralidade dos seus objetos.

Cada vez mais, escasseia a persistência e a sensibilidade para conseguirmos ter tempo para ouvir o outro, para compreender as suas preocupações, as suas lágrimas e inseguranças.

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