Sr. João

O Sr. João agora era o Joãozinho, na mão da auxiliar que, com carinho, o ajuda a levantar da cama que ocupa agora no lar da terceira idade. O quarto partilhado, com outro utente, que continua deitado de boca entreaberta apesar das luzes todas acesas. Não faz ideia de quem seja aquele companheiro. Havia uma mulher, companheira da sua vida. O que seria feito dela?

O Sr. João sente-se meio-perdido. Tem uma ideia vaga da cómoda de madeira escura que tinha em frente à cama, onde a sua esposa exibia uma Nossa Senhora que tinha comprado numa viagem a Fátima, por cima de um naperon feito pela sua sogra. Havia o guarda-joias em que ela colocava os acessórios escolhidos para usar nos últimos dias, e uma caixa com maquilhagem. Dele havia um pequeno prato, uma cerâmica comprada numa viagem, para onde esvaziava os bolsos. Agora havia uma mesa em frente à sua cama, cor de laranja, com as mesmas fotografias dos filhos que finalizavam a decoração da cómoda no seu quarto, na sua casa. Contudo, o Sr. João já não sabia bem de quem eram aquelas caras, agora que era o Joãozinho. Nem que caminho tomar para voltar para casa.

Na vida antes da vinda para aquele quarto, ele tinha sido professor. Ou médico. Ou advogado. Talvez administrativo, ou condutor de máquinas. Era senhor da sua vida. Vivera um grande amor, a sua esposa, de quem se lembra e sente falta. Não faz ideia por que razão já não está perto de si. Parece-lhe a si que não havia muito tempo, guardava uma boa nota para dar a cada um dos netos pelo Natal. E não se esquecia de uma revisão do carro, e sabia quanto gastava por mês em gasolina.

Agora, o Joãozinho vai a uma consulta. É um dos filhos que o leva. Alguém que diz ser seu filho, um homem de barba feita, que os seus filhos eram pequenos. Ainda se lembra da tarde em que, em aflição, levou um ao colo até à urgência do hospital, com o sangue a jorrar pelo nariz. Era o tempo em que dava um murro na mesa e todos se calavam. Agora arrasta os pés sem forças.

Há uma vaga lembrança dentro de si mesmo. Talvez seja por isso que é teimoso. Perde-se nas teimas, já não sabe as suas razões, mas continua a teimar para se sentir um pouco senhor de si. Não gosta que o chamem Joãozinho. O professor da escola primária é que o chamava assim, antes mesmo de lhe aplicar as reguadas. Tem pouca força no corpo, ele sabe. Mas ainda gostava que o tratassem por Sr. João e sem ser por tu.

Nota: Artigo escrito segundo o Novo Acordo Ortográfico

Share this article
Shareable URL
Prev Post

O fascínio das bibliotecas itinerantes

Next Post

O sorriso enigmático do javali

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Read next

Masters of Sex

O sexo tem um papel proeminente em muitos dos argumentos de séries que estão no ar actualmente,…

O melhor do mundo

O Governo Português incumbiu Joaquim Azevedo, professor da Universidade Católica, de liderar um grupo de…

Mães e mãezinhas

Há poucos dias celebrou-se o Dia da Mãe. Nestes dias, nos dias de homenagem, paro sempre para pensar naqueles…