Biblioteca: biblio (livro) + teca (caixa). Caixa/casa dos livros, onde estes seriam colocados de forma organizada, para consultas e leitura. Os gregos conheciam bem a literatura.
Em Portugal, a génese da biblioteca itinerante está associada à Fundação Calouste Gulbenkian. Não foi assim.
A 1.ª República pretendeu combater a ignorância, através do desenvolvimento de uma política educativa que democratizasse o acesso à cultura. Uma biblioteca próxima das necessidades dos utilizadores estabelece-se em hospitais, prisões e caminhos de ferro. Mas, das 50 móveis, em 1920, restam 19, no ano de 1926. Baixos níveis de utilização, certamente decorrentes da instabilidade política e social registada naquele período.
A segunda experiência foi conduzida pelo Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, cujo diretor era António Ferro, entre 1945 e 1949. Embora tenha percorrido populações rurais de norte a sul do país, a iniciativa não vingou. A seleção tinha um profundo pendor ultranacionalista, difusor dos valores ideológicos do regime político vigente. O ideal de um país pobre, mas feliz. A Cidade e as Serras e A Ilustre Casa de Ramires, sim. Os Maias e O Conde de Abranhos, não.
Surge, então, na década de 50, António Branquinho da Fonseca, conservador-bibliotecário do Museu-Biblioteca do conde Castro Guimarães, em Cascais. Introduz-se o empréstimo domiciliário e põe-se em prática uma constante atualização de fundos documentais abrangentes, atraindo novos públicos para a leitura.
Em 1958, a Fundação Calouste Gulbenkian convida Branquinho da Fonseca para iniciar o Serviço de Bibliotecas Itinerantes. «[…] quando o homem, por qualquer motivo, não se interessa pelo livro e não busca a sua convivência, o livro tem de procurar e interessar o homem, para o servir, quer instruindo-o quer recriando-o.» Palavras de Azeredo Perdigão, Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, no Boletim Informativo n.º 5.
Apresentavam-se novidades: gratuitidade; empréstimo domiciliário (até cinco livros) das obras por um período alargado (mensal); aconselhamento personalizado aos utilizadores; livre acesso às estantes, fundo documental generalista, em constante crescimento e atento às necessidades próprias de vários grupos, como as crianças e os adolescentes, e serviço da Biblioteca Central de Empréstimo, que disponibilizava um conjunto de obras de menor difusão e de cariz mais específico.
As carrinhas Citroën cinzentas da FCG levavam, nas prateleiras de baixo, os livros para crianças, nas do meio, a literatura de ficção, de viagens e biografias e, nas de cima, os livros menos procurados, de filosofia, poesia, ciência e técnica. Procurava-se chegar ao leitor nas comunidades onde se inseria, normalmente populações das zonas rurais: «Com a intensificação dos trabalhos agrícolas, verificar-se-á a necessidade de ajustar o horário de serviço das bibliotecas às conveniências da população rural, pois que, em muitas localidades, os leitores não poderão ir à biblioteca antes do fim da tarde.» (Circular n.º 8, de 1959).
Os bibliotecários começaram por ser intelectuais e poetas, como Alexandre O’Neil ou Herberto Hélder, que foram abandonando esta função devido à dificuldade de se deslocarem para locais remotos. Começou, então, a recorrer-se a pessoas das comunidades, alfabetizadas, com um certo grau de cultura geral, gosto pelo livro e predisposição para o contacto público. Algumas ainda ternamente lembradas pelas crianças e jovens de então, que descobriam os livros, ou pelos namorados que os utilizavam para trocarem declarações de amor, sem gastarem dinheiro no selo do correio.
É importante lembrar que, em pleno Estado Novo, este e a Igreja Católica punham entraves a atividades culturais, muitas vezes através de ameaças, confrontos físicos ou proibição de as crianças frequentarem as bibliotecas por serem consideradas perniciosas. «…as bibliotecas itinerantes têm características fundamentalmente populares, não podendo, pela sua intenção e orgânica, comportar obras eruditas, de especialização científica, ou em línguas estrangeiras.» (Circular n.º 1 de 1958). Os livros estavam marcados com fitas vermelha, laranja e verde. Um processo no arquivo da PIDE/DGS referia a denúncia, vigilância e perseguição de funcionários das bibliotecas itinerantes. Ainda assim, o seu número e cobertura ao longo do país foi aumentando gradualmente. No entanto, por dificuldades financeiras, a FCG extinguiu este serviço em 2020.
Renascem, mais tarde, por força do investimento dos municípios. Descobrem novos públicos nas fábricas, centros de dia, bairros residenciais e praças públicas. Funcionam com novos veículos. Continuam a combater a iliteracia dos lugares mais isolados, mas oferecem outras valências: música, filmes, acesso à Web, digitalizações e impressões, pagamentos eletrónicos, recolha de património oral, atividade física, cuidados de saúde básicos, apoio ao cidadão.
As bibliotecas itinerantes continuarão a fazer muito pela cultura e pela difusão do conhecimento.
O mundo não seria maravilhoso se as bibliotecas fossem mais importantes do que os bancos?
Felipe, uma das personagens da BD Mafalda
Este artigo foi escrito segundo as regras do novo AO.
Muito interessante saber tudo isto que contaste!
Vivam as bibliotecas itinerantes!
Adorei o artigo e o encadeamento do aparecimento das bibliotecas itinerantes, pois menina sem livros e faminta de leituras, foi desta forma que os meus passos foram dirigidos para um pouco de conhecimento. Grata