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O custo da abundância

A população humana já ultrapassou a barreira de 8,2 mil milhões de pessoas, perspetivando-se que cresça até aos 10,3 mil milhões de pessoas. Contudo, estamos distribuídos desigualmente pelo planeta. Do total, a Ásia detém 58,9% do total, seguida da África (18,6%). Um dos impactos do crescimento populacional sente-se numa pressão cada vez maior na natureza, fruto de uma maior necessidade de consumo de bens. 

Nem sempre vivemos com a abundância de diferentes produtos como atualmente, especialmente no Ocidente. Se algo caracteriza os sistemas económicos anteriores ao capitalismo é a dependência das populações de bons anos agrícolas, sob pena de sofrerem períodos de fome, devido à escassez de alimentos. Quem tiver curiosidade suficiente em pesquisar, verificará que houve fomes maciças ao longo dos diferentes séculos passados, por vezes, mais de uma vez no mesmo período, motivadas por pragas nos campos, guerras ou condições climatéricas adversas, levando, nalgumas situações, a grandes revoltas populares.

Nos anos que se seguiram à Primeira e Segunda Guerras Mundiais, porém, produziu-se um conjunto de alterações nos comportamentos. De um modo concreto, há uma mudança onde todas pessoas, e não apenas as das classes sociais mais altas, são encaradas como consumidores. Esta transformação adotou dimensões tais, que, para muitas pessoas, a sua autoestima e sentimento de pertença dependem também da sua capacidade de consumo, especialmente de determinadas marcas.

Em parte, esta mudança também respondeu a um problema do capitalismo: a tendência de criar excedentes de produtos, provocando crises de sobreprodução. Contrariamente ao cenário europeu, no pós-Segunda Guerra Mundial, no qual os campos agrícolas e fábricas estavam destruídos, nos Estados Unidos da América, toda a sua capacidade produtiva estava, em grande medida, intacta. Considerando que o ritmo de produção industrial nos EUA se encontrava em pleno fulgor, foi necessário reconverter a economia, que estava voltada para o esforço de guerra, para uma economia orientada para o período de paz. Disto, resultou um foco no consumo interno e internacional, como meio de escoar e, assim, evitar crises de sobreprodução. É neste período que surgem diferentes estratégias de incentivo ao consumo, como é retratado na série Mad Men, em que a personagem principal, Don Draper, satiriza, ao afirmar que a ideia de “amor” foi criada por profissionais como ele para vender, por exemplo, meias de nylon.

Na era do consumismo, assistimos a um fenómeno interessante: a felicidade individual depende do consumo de produtos, muitos dos quais nem temos necessidade. É o que Gilles Lipovetsky descreve de civilização do consumo, nomeadamente uma sociedade na qual o desejo de consumir é tão intenso que se transforma numa necessidade a ser satisfeita, sem que, contudo, seja possível realizar completamente. 

Uma das consequências visíveis desta sociedade assente na venda de produtos com margens menores é a exploração de trabalho infantil. Num relatório acerca da indústria do vestuário, a UNICEF estima que cerca de 100 milhões de crianças são afetadas ao longo dos diferentes níveis da cadeia de oferta. Os problemas vão desde insuficientes sistemas de suporte a trabalhadores que foram pais, insuficientes condições materiais de vida, em função de baixos salários e fracas condições de trabalho, ao emprego de crianças nas fábricas e noutras empresas que se distribuem pelos diferentes níveis da cadeia de oferta e produção. Isto é especialmente visível em países africanos e, sobretudo, asiáticos.

O impacto da chamada fast fashion é muito significativo, especialmente, nos países pobres. Esta indústria, à semelhança do que se verifica de modo geral em várias indústrias de consumo, está baseada na produção em massa e no consumo acelerado, criando um ciclo de procura que explora recursos naturais, mão de obra barata e condições de trabalho precárias. A rapidez com que as coleções de vestuário são lançadas e descartadas contribui para o aumento de resíduos têxteis, que acabam em aterros, na maioria em países pobres. Além disso, estimulam uma mentalidade de consumo efémero, no qual as roupas e, por extensão, outros produtos, são comprados não para durar, mas para satisfazer um desejo momentâneo de novidade, pronto a ser descartado e substituído num novo lançamento. 

O impacto social não se limita à exploração direta dos trabalhadores, alguns deles menores de idade. Este consumo rápido e excessivo de produtos também cria uma desarticulação crescente entre as pessoas e os recursos naturais necessários para suprir esta procura. E o foco no consumo imediato e na gratificação instantânea fragiliza a consciência sobre a necessidade de práticas mais sustentáveis e de um estilo de vida mais equilibrado do ponto de vista do consumo.

Não se trata de fazer uma apologia do regresso a uma sociedade da escassez, mas à necessidade de repensar os nossos hábitos de consumo, tendo presente que os produtos baratos, que compramos facilmente, têm um preço elevado no ambiente e na vida de pessoas, algumas delas crianças.

Ao mesmo tempo que fazemos uma transição energética, é também momento de iniciarmos uma transição de padrão de consumo, na qual a nossa felicidade não dependa do que compramos, mas de como compramos e usamos.

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