Eram umas vezes.
Era uma vez um artista italiano, de nome Salvatore Garau, que cria obras de arte invisíveis (ou inexistentes), com o cuidado, para bem das ditas, de as delimitar com fita visível para que todos possam saber onde ela está, sem que, contudo, a possam ver. Para além deste zelo em estabelecer fronteira entre o que é artístico e o que não é, pois de outra forma não estaríamos aptos a fazê-lo, o autor dota as suas obras de certificado, com instruções claras de como se deve proceder no tratamento das mesmas e clarificando o seu propósito: “escultura imaterial (…) Para ser colocada numa casa particular, num espaço livre de qualquer estorvo de aproximadamente 150 x 150 cm” e vende-as onde se vendem as obras de arte, em leilões. É uma história que, tirando a obra de arte, tem tudo o que é preciso. Até comprador para a dita obra! As histórias têm destas coisas fantásticas.
Era uma vez um senhor que, a certa altura do seu percurso artístico – sem esta história, corríamos bem o risco de não ter vindo a conhecê-lo – resolveu fazer um levantamento das fábricas de peças de cerâmica da sua redondeza artística e escolher o melhor fabricante. Encontrado o produtor mais habilitado da peça que procurava, já feita, Marcel Duchamp resolveu travestir a realidade: o que havia sido produzido em massa para servir as necessidades mais básicas do homem em qualquer divisão menos nobre de qualquer casa ou estabelecimento, ao qual temos de reconhecer o serviço público prestado, passa a chamar-se Fonte, segundo interpretação e baptismo provocador do seu novo proprietário. Ainda que se tenha mudado o nome, preservou-se alguma coerência, pois se um urinol é bem entendido nesses lugares de sombra como as latrinas, uma Fonte pede outro lugar. Pois claro Sr. Duchamp, a Fonte deve estar num museu, onde possa ser vista por olhos de gente entendida na estética da arte, em vez de estar numa qualquer casa de banho, ladeada por iguais. Saberia já Duchamp que quem come comida fastfood também pode engolir arte ready-made?
Era uma vez um senhor, assinalado nas enciclopédias como pai do suprematismo, que a dada altura resolveu pintar um quadrado branco sobre uma tela em branco. Tantas e boas discussões se podem ter à conta deste senhor Malevich… Acautelem-se! Se partirmos do pressuposto de que o branco é essa cor que pode revelar, ou conter, um infinito de possibilidades, já antevemos a dimensão dos debates. Também pintou um quadrado negro, porventura para encerrar as discussões, pondo, através da cor, ponto final a todas as formas. O senhor Kazimir não se limitou a pintar estes quadros ou a esgrimir teorias filosóficas e metafísicas sobre eles, ele colocou-os num museu, a par de outros menos abstractos, ou não saberíamos nós desta história. O que teria sido daquelas telas se nunca tivessem entrado num museu? Precisava a Arte de as ter na sua História?
Era uma vez um senhor que, certa vez, tocou violino durante quarenta e cinco minutos à porta de uma estação de metro em Washington, granjeando uma atenção do público transeunte que se pode medir em trinta e dois dólares de reconhecimento. Esta história não parece ter nada de especial, não é? Quantos músicos vemos nós a exercer a sua arte nas estações de metro e ruas da cidade? Sucede que o senhor do violino era Joshua Bell, um dos maiores violinistas contemporâneos, que teve a coragem de levar um stradivarius avaliado em mais de três milhões de dólares para o metro e nele tocar peças de Bach. Este violinista, dias antes, havia esgotado uma sala de concertos em Boston, onde, para além de pararem, as pessoas pagaram para ouvir.
Lidamos melhor com a arte se ela estiver em local adequado. Mas o que é um local apropriado? Aquele que nos põe nesse estado de receptividade próprio para apreciar uma obra de arte? Os museus fazem-nos um trabalho de selecção de obras que devemos conhecer, um trabalho económico que pressupõe que não podemos aceder a todas em tempo útil, então alguém trata de fazer essa selecção, mais ou menos consensual, que nos habilita e dota de capacidades de espectador artístico. Os 100 livros mais importantes da história da literatura; as melhores bandas sonoras de sempre; os clássicos do cinema italiano; os maiores pintores da Renascença… enfim, as listas que nos podem guiar são infindáveis. Reconhecemos a vantagem destes guiões de gosto, porque de facto não temos tempo para fazer uma pesquisa exaustiva no tempo de uma vida, acontece que tanto fazem este trabalho por nós que perdemos a capacidade de o fazer individualmente. Passamos a duvidar da nossa capacidade de análise, da nossa opinião e sobretudo condicionamos a nossa predisposição ao fruir desinteressado da obra. Hesitamos em admirar algo se não houver de antemão quem o tenha feito também, levando-nos a um estado de carência de corroboração, tanto na aprovação como na depreciação de uma obra de arte.
Parece-me ser daqui, desta insegurança de apreciador artístico, que nasce a grande mais valia da arte contemporânea. Mais do que as obras de arte que nos deu e dá, é esta capacidade de interpelação, esta provocação latente que aporta e que nos retira da apreciação confortável e apaziguadora do Belo.
As Artes Plásticas construíram-se, durante muito tempo, vendendo-se a encomendas, dando resposta a pedidos e desejos de ilustres, que se faziam retratar ou tratavam de promover registos de acontecimentos importantes, procurando alindar a realidade e alegrar clientes. Nesta dinâmica, nós, espectadores, éramos os inquisidores perante a obra de arte, sobrepondo-nos a ela e questionando-a sob vários aspectos, criando várias correntes de apreciação. Agora – há quanto tempo! – não é assim. A arte não se quer bela e objectificada, qual mulher no século passado, decorativa. Agora parece ser a arte que nos aponta o dedo, questionando-nos sobre o nosso lugar no mundo, questionando-nos sobre o nosso papel de observadores, interrogando-nos sobre o próprio valor e estatuto da obra de arte.
Recordo uma peça da Joana Vasconcelos. Uma figura feminina, envergando uma burka, içada e largada ruidosamente de um guindaste. Levantada e lançada ao chão, consecutivamente, num ciclo que parecia não ter pressa nem fim, produzindo um estudado estrondo com a queda e eu, ali, meio hipnotizada a ver a sucessão dos maus tratos naquela mulher, a ficar agoniada. Esta instalação comunicou comigo sem, pelo menos de forma consciente, atravessar qualquer conceito que possa ter de apreciação da beleza. Não pude dizer grande coisa dela, disse-me ela a mim. Continua a dizer.
Quer-se agora a Arte mais Ética do que Estética? Estará ela a dar-nos o que precisamos? Até onde aquele quadrado de autoria italiana nos mostra o quão surpreendentes podemos ser e quão inacreditáveis nos estamos a tornar? Somos nós espectadores ou somos os observados quando nos desvendamos nalguma nudez de argumentação e critério perante a obra de arte?