O primeiro de Novembro

O ser humano é uma caixinha de surpresas. Como é seu apanágio tem dois pesos e duas medidas. Quando é para pagar entende reclamar que o valor é elevado e quando é para receber queixa-se de ser pouco. Esquece-se que a vida dá muitas voltas e o que ajuda, um dia, pode vir a precisar de ser ajudado. Uma bola que rola sem qualquer tipo de travão.

Este ano disponibilizei-me para ser aquela que pede para auxílio para outrem. Fui voluntária no peditório da Liga Portuguesa Contra o Cancro. Voluntário é uma palavra cheia de significados e que tende a ser mal interpretada. Significa que se dá sem nada receber em troca. Não há pagamento pecuniário por essa vontade. Esta é uma causa grande e deve ser apoiada. Foi assim que pensei e melhor o fiz.

Sabia que ia encontrar todo o tipo de pessoas e, muito provavelmente, algumas com má vontade e com palavras menos simpáticas. Há sempre de tudo numa sociedade e é isso que produz a massa heterogénea e interessante. Digamos que foi uma aula de sociologia ao vivo, sem guião e a cores, sem esquecer a parte sonora.

Estando devidamente identificada e com o pequeno cofre em riste, comecei a abordar os clientes que saíam dum conhecido supermercado. Foi o início de uma enorme aventura que me trouxe muitos proventos. O mote da colecta era bem conhecido e, por isso, não havia qualquer dúvida do seu objectivo. Seriam umas horas bem empregues.

Reparei numa senhora que contava as moedas para pagar as suas compras. Apesar de ser o princípio do mês, as pessoas têm os seus orçamentos restritos e nem sempre podem fugir deles. Os seus olhos mostravam uma vida dura e, por breves momentos, hesitei em lhe pedir algum contributo.

Pegou nas compras e dirigiu-se a mim. Com um enorme sorriso, revelou-me que vai economizando todo o ano para esta causa. Deixei-a falar e ouvia-a mais do que ela pensou. Alguém lhe morreu de cancro e ela sente-se na necessidade de ajudar outros. Não o disse, mas deixou transparecer. Dobrou uma nota de 10 euros e colocou-a no cofre desejando-me boa sorte. Agradeci-lhe, como fiz com todos.

Vi-a desaparecer mais à sua dor. É sempre complicado ficar indiferente a estes gestos. São situações que nos marcam. Estava disposta a ouvir tudo o que me tivessem reservado para contar. E ouvi muito e mais o que não revelaram. E vi lágrimas de saudade e revolta por a vida ser injusta e levar os entes queridos demasiado cedo. É difícil aceitar a perda.

No entanto, há quem olhe de lado e faça de conta que a realidade não existe. Tudo serve de desculpa para não colaborar. Não há qualquer obrigatoriedade, apenas boa vontade. Entre “vou trabalhar“, “não me fale disso” e “dei a semana passada” encontra-se uma panóplia de disparates. Não quer dar não dá e ponto final. Olhavam-me com ar desconfiado como se os estivesse a burlar.

Os pequenos cofres estão selados e serão abertos por responsáveis da Liga o que não permite que sejam violados em momento algum. Estão identificados com números e com o nome do voluntário que o pendurou ao pescoço. Todo o dinheiro angariado é para a mesma causa, a que diz respeito a todos, mesmo que a queiram ignorar.

Estar doente com cancro não é um acto isolado. É uma doença democrática que ataca todo o tipo de pessoas e em qualquer idade, Não escolhe raça, cor, religião ou classe social. Vai tudo a eito. E envolve a família e os amigos. Mina todas as relações e muitos casamentos terminam quando é feito o diagnóstico. Não é justo, mas a vida é uma madrasta malévola.

Outras pessoas perguntavam-me o que era o cancro. Primeiro pensei que me estavam a testar, mas depois percebi que desconheciam mesmo o significado da palavra. Um deles ficou tão sensibilizado que decidiu doar todas as moedas que tinha consigo. O seu semblante mudou. Interrogo-me como se pode andar tão distraído. Esta é a realidade. A nossa. Com tantas campanhas e mesmo assim passa tudo ao lado.

Uma senhora confidenciou-me que não tinha a mama esquerda há dezanove anos. Não lhe fez falta este tempo todo. Desfiou o rosário da sua vida e ficou aliviada por alguém a ter ouvido. Outra veio de propósito entregar uma nota, “sabia que estava aqui hoje e este peditório é verdadeiro“.  Quase todas são senhoras, as mulheres, as cuidadoras, as mais sofredoras.

Um senhor teve um reparo curioso: “Não se meta nisso.” A isto se chama ser parvo, mas fiquei-me com o pensamento. Outros, homens, afastavam-me como se eu sofresse de Lepra ou alguma doença contagiosa. Porém, que falta de se saber ser e não entender o que é a empatia. Oxalá nunca tenham necessidade de passar por uma situação desse teor. Sofrer ainda se encontra no feminino.

Entre conhecidos e antigos vizinhos, ia dando sempre um dedo de conversa e colocando a escrita em dia. As moedas iam caindo no cofre e esse era um som que me alegrava. Se todos dessem um pouco que fosse, seria bem mais fácil para tantos. Um senhor veio depositar uma moeda e pediu desculpa por ser tão pouco. “É a única que tenho, mas fica bem entregue.” São gestos destes que alegram o coração de quem se oferece.

Temos de estar de mente aberta e com disposição para ouvir. Existem tantas pessoas que vivem sozinhas e precisam de falar, de ser escutadas e receber de volta um sorriso. Uma senhora lamentava a morte recente do seu pai. “Maldita doença! Ainda nem consigo falar disso!” Soltou tudo o que tinha acumulado assim como as lágrimas e fez-lhe bem. O marido abraçou-a como se ainda fossem namorados de primeira água. A terapia resultou.

O caricato foi ver adultos vestidos como se o Carnaval fosse todos os dias. Um estava trajado de Arlequim e outro de um ser estranho que nem sei identificar. um comportamento tão estranho como as roupas que usava. Algumas crianças aproveitaram para desfilar a recente ideia do Halloween. Com essas ainda se entende a ideia da brincadeira, mas com adultos torna-se bizarro.

E era ver de tudo a passar naquele supermercado. Máscaras costumam ser metafóricas, mas aquelas eram bem reais. Onde raio vive aquela gente que continua a comportar-se como se fossem crianças? No mundo do Peter Pan? Numa nuvem passageira? Num mudo paralelo?

O que me alegrou ainda mais foi verificar que a tradição estava a recuperar a boa saúde. Dia 1 de Novembro é dia de Todos os Santos e, em 1755, um valente terramoto assolou a zona de Lisboa. Morreram muitas pessoas e as restantes, as sobreviventes, tiveram que se safar como podiam, a pedir esmola. Pediam pão, por Deus, no sentido de para se alimentarem. A deturpação levou a pão por Deus.

Mais tarde passou a ser um hábito que levava as crianças a baterem de porta em porta a pedirem o seu pão, que seria mais guloseimas ou, até mesmo, uns mimos como quinquilharias que fazias as suas delícias. Era um tesouro que ficava acumulado e lhes dava muito prazer.

O tradicional saco de pano, feito com restos de tecidos, já andava em algumas mãos que, certamente, tinham feitos algumas viagens durante a noite anterior e agora buscavam mais conforto com quem fazia compras. Por ser curioso e mostrar crianças desembaraçadas, algumas pessoas colaboravam de bom grado.

Continuei no meu posto até que as pernas me começaram a trair assim como o estômago. Conforme disse um dos colegas: “Nós somos voluntários e não escravos, por isso paramos quando houver necessidade“. Foi então que notei como o cofre estava pesado. É dinheiro que vai ser muito útil, mas mais importante que o vil metal era a boa vontade que ali estava arrumada.

Por momentos senti-me uma Blimunda, que recolheu 2000 vontades. Não sei quando será o montante apurado por aquela caixa, mas a minha presença naquele local não foi em vão. O conforto que certas e determinadas palavras deram a quem precisava, foi a mais valia duma manhã que se pretendia cheia de luz e sol.

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