A mente é prodigiosa. Tem uma capacidade extraordinária de tirar uma pessoa de situações constrangedoras, ou pelo menos de situações desconfortáveis. A dela destaca-se ainda mais pelas ideias que lhe entrega para as usar de forma sábia. Assim consegue o que quer, não só para ela mas também para quem lhe interessa. Tal aconteceu naquela noite.
Ele mais uma vez procurou um refúgio num copo de cerveja. Não na intenção de se embriagar, apenas com o propósito de se aninhar num espaço familiar e num tempo amistoso. Aquele bar dava-lhe ambos. Permitia-lhe a discrição que significa refúgio de si próprio e permitia-lhe ultrapassar horas de uma vida que por vezes teimavam em não avançar, deixavam-no estagnado e sem perceber o que fazer com o seu tempo.
Naquela noite o bar encontrava-se igual a como sempre o conhecera. Os mesmos sons, os mesmos cheiros. A música ambiente de acordes retidos no alternativo. Tindersticks depois de Portishead, Velvet Underground após The National. Sons familiares que naquela noite não o distraiam da voz que se instalara ao seu lado e o sacudia por dentro. Copo de cerveja pousado, vazio. Um sinal e outro copo. Mais um refrescante e prazeroso trago.
Estava difícil. Ela sentada ao balcão, a seu lado, a falar com uma amiga. Estava demasido próxima para a olhar, para a contemplar. Vira-a a entrar e reconhecera a sua beleza. Não ela, apenas a sua beleza. Sonhara com aquela beleza, com o ideal do belo que ela era para si. Sentia-se chocado. Viu-a a entrar, olhou e teve tempo para a observar. A observação transformou-se em encantamento. Cada curva, cada aspecto da sua figura, cada pequeno lugar da sua roupa, cabelo, rosto. As cores e a forma como se reflectiam nela. O estigma da sensualidade. Sabia ser muito raro, mais do que improvável, mas ali estava ele ao lado de alguém que era o seu ideal de beleza. De beleza física. Sim, apenas isso para já. E isso era-lhe um tormento. Corresponderia ela também a uma personalidade que se encaixasse nos seus sonhos já tidos? Como saber?
A tortura que era estar ao lado dela fê-lo perder a compostura. Queria olhar mas resistia. Resistia cada vez menos. Procurava uma forma de o fazer sem causar desconforto. Foi falhando paulatinamente até se saber fracassado. Ela virou-se para ele e confrontou-o. Ele desfez-se em desculpas. Ela insistiu e ameaçou. Ele revelou porque se estava a comportar assim. Ela gostou de se sentir bela mas não de se ver violada no seu espaço. Ele desculpou-se mais. Ela desculpou-o. Voltaram ao que faziam antes. O que não era bom porque nada tinha mudado. Sentia-se ela agora desconfortável, a desviar o olhar para ele. No início para perceber se continuava a ser observada, depois só por olhar, até deixar de saber porquê. Apenas olhava.
Ele não se conteve. Tinha que destapar a personalidade que se escondia por detrás do desconhecimento. Apresentou-se e falou-lhe. Ela correspondeu e falaram. Logo ela questionou que felicidade procurava ele isolando-se num bar. Ele apontou para ela. Ela riu-se e apontou para o copo. “Parece-me que procuras a felicidade no fundo de um copo”, disse-lhe ela. “Está difícil, mas sou resiliente. Hei-de a encontrar”, respondeu ele. “Que haja mais sorte do que copos” retorquiu ela sorrindo por um canto da boca. Querendo aliviar a tensão que se instalou nele pelo decorrer daquela conversa, levantou-se pedindo desculpa e saiu para fumar um cigarro. Prometeu voltar apontando para o copo ainda a meio. Ela ficou e observou-o a sair, admirou-se quando se apercebeu que queria que ele cumprisse a sua promessa e voltasse. Pegou numa caneta de feltro, pediu um copo de cerveja vazio, escreveu por baixo e pediu para o servir naquele copo, na próxima cerveja.
Ele regressou. Sentou-se e sorriu. Ela devolveu o sorriso. Alongaram-se um pouco com histórias de vida. Coisas mundanas. Ele pediu mais um copo. Uma vez pousado à sua frente, ela levantou-se, colocou uma mão no ombro dele e disse-lhe com uma suavidade enigmática na voz: “Foi um prazer mas tenho que ir. Boa sorte nessa demanda, que tenhas sucesso”. “Não, espera. Vais assim? Nem o teu nome me disseste”. “E não é melhor assim?” E saiu sem lhe dar oportunidade de voltar a falar-lhe.
Ele sentou-se imóvel a pensar na oportunidade perdida. Bebeu um longo trago e continuou a enevoar-se com a ausência de um nome, a falta de um contacto. Apoquentava-se ali e imaginava mundos que não poderiam existir. Pegou no copo e bebeu mais um trago. Começou a ver surgir um estranho desenho por baixo do copo. Parou e quis ver o que era. Percebeu que eram letras mas não conseguia ler. Levantou o copo acima da cabeça mas a iluminação escurecida do bar não o permitiu perceber o que dizia. Ao nível do balcão tinha luz, mas se inclinasse o copo entornava a restante cerveja. Tentou incliná-lo apenas um pouco e a cabeça na posição oposta. Não conseguiu e ainda percebeu a figura que estava a fazer. Começou a ficar irritado quando percebeu que a solução era a mais simples. Deu uma gargalhada. O barman que o observava deu outra quando o viu a beber o resto de uma só vez. Finalmente pôde virar o copo ao contrário e ler um simples “V” e um número de telefone.
Saiu a sorrir com a possibilidade de ter descoberto a felicidade no fundo de um copo de cerveja.