“De toda a parte”.
A “doutora” estarreceu com estas palavras. Não pelo significado que ficou suspenso no espaço entre eles, um mero jogo de palavras e sentidos. Estarreceu porque o jovem de que cuidou senão à memória, disse-o com tamanha paz espelhando a mais genuína verdade tatuada no seu olhar.
Se ele vinha de toda a parte como poderia ser alguém? Todos temos uma casa, por mais longínqua que dela vivamos. Mas este jovem, espécime belo na sua pele morena refeita da violência em que a paz é reflexo de trauma, mais não fez com aquela resposta do que empurrar a “doutora” para uma procura da sua própria casa, na sua própria casa.
Ela vivia triste e a população assistia à sua vida triste. Tristeza desde que o mar levou o seu marido e os seus jovens filhos, ainda alunos na vida. Um mar selvagem, aquele mar e uma onda impiedosa, um destino carregado de injustiça, desespero, dor.
Nesse dia a doutora em que o fado a cicatrizou, ela morreu com eles. Passou a olhar da sua janela o mar de túnica negra e o vazio como rosto. Apenas as maleitas dos vizinhos a acordavam da letargia da dor. Eles conheceram a crueldade no luto e nas lágrimas dela e praticamente convidavam a doença para que a “doutora” pudesse deles cuidar e assim viver um pouco dando vida.
Também por isso todos se alegraram quando a “doutora” lhes falou desse jovem de que nada conseguia dizer por nada dele saber. Esse casal de fora que o encontrou prostrado no areal e que ali não se deixou em mais delongas partiu levando os seus testemunhos. Os inexistentes vestígios dele ou do que para o levou eram mistérios que apimentavam vozes de cafés. No fundo ninguém acreditava na “doutora”, mas ao sentirem a vida que nela jazia esquecida, todos aceitaram a sua inexplicável história querendo mesmo acreditar no que os olhares não viam.
Os dias foram passando lentamente e o assunto cuidou-se em se banalizar. A doutora lá ia aparecendo dando notícias de como o jovem estava cada vez mais desperto, mais belo agora com o vigor recuperado. Em breve partiria em busca de si próprio. Todos desejaram que tal não acontecesse. Queriam que ela continuasse a viver, a ser a vida de que desistira. Há quem jure ter-lhe visto um sorriso nos lábios. Ela disfarçava-os. Brincavam com ela insinuando afectos e lascivo acto carnal entre os dois. Ela esforçava-se mas começava a a não se negar até que riu, e todos riram com ela.
Nesse dia regressou a casa para junto do seu paciente cantarolando. Ao chegar viu-o de costas nuas e no peso da sua idade menor que as rugas sentiu-se de novo mulher. Perguntou-lhe docemente:
– Estás bem?
– Sim, estou. respondeu ele virando-se para ela.
De novo a doutora estarreceu quando viu o seu falecido marido na sua frente. Ele jovem e belo mostrava-se tal e qual como no dia em que se conheceram e se apaixonaram.
Caída num lago das suas repentinas lágrimas, segurou na mão que ele lhe estendeu e ouviu-o.
– Chega de lágrimas, minha princesa. Eu sou ninguém e sou nada, sou a poeira dourada da tua memória presa.
– Mas como! Tu estás aqui, estou a ver-te, estou a tocar-te, estou a sentir a tua mão.
– Não, não. O que sentes é a tua paixão. A paixão que parecia perdida. Vim mostrar-te que ainda a tens, que ainda vives. O mar não precisa mais das tuas lágrimas, bem salgado já ele é. O mundo sim, precisa de algo. Algo que é o teu sorriso.
Ela sem compreender o que acontecia, concentrou-se em si, limpou o sal dos olhos e aos poucos foi despertando de um sonho demasiado real. Percebeu que a força da memória dos seus falecidos era agora um olhar no seu futuro. Por tal memória e para tal memória, criou em si um homem incógnito que de jazido recuperou para a vida. E ao fazê-lo, dessa memória curou-se a si. Recuperou-se para a vida. Alívio no enterro do seu luto que perdurara tempo de mais.
De pé, da janela olhou o mar, fitou-o e sorriu para ele.