A História é o que é, mas não tem de continuar a ser o que foi

Os últimos anos têm assistido a um crescendo nos movimentos apocalípticos anti-história. Apocalípticos, no sentido em que querem a destruição do mundo actual, para a construção de um mundo mais justo, mais ideal. Era essa a visão apocalíptica bíblica. Estes movimentos do “politicamente correcto”, pretendem aniquilar todas as manifestações da história para poderem começar do zero na construção deste mundo perfeito, onde todos têm direitos e onde todos são respeitados. Para lutar por este respeito, igualdade e justiça, querem destruir o passado, revelando muitas semelhanças entre o condenado e o carrasco. “Nunca sirvas a quem serviu e nunca peças a quem pediu”, diziam os antigos sempre sábios. É isto a que assistimos hoje. O antes subjugado, destrói e subjuga. Elimina vestígios da História, numa tentativa vazia de apagar a memória.

Esta confusão entre História e memória parece ser recorrente nas esferas sociais e no espaço público. Na verdade, a memória pode ser mudada, fabricada, adulterada. Ao longo dos anos temos percebido isso e os estudos científicos sobre o tema, confirmam. A memória pode ser transformada e, por isso, podemos contar muitas vezes a história de um povo de uma certa maneira e será essa visão que irá passar às gerações futuras. É isso que queremos alterar, na verdade. A memória futura das próximas gerações. Queremos mostrar que não existiram descobrimentos, mas sim conquistas. Queremos ilustrar que a escravatura foi um flagelo e que muitos sofreram coisas inomináveis. Queremos evidenciar a linha cronológica que nos fez ainda ser uma sociedade racista. Sim. Ainda somos uma sociedade racista. O racismo estrutural faz parte das nossas vidas. A misoginia subtil faz parte das nossas dinâmicas. E isso vem da História. Daquela que não pode ser apagada. Daquela que nos conduziu aqui. Daquela que tem de permanecer erigida para alicerçar a nossa vontade de nunca mais lá voltar. Lá porque a História é o que é, não quer com isso dizer que continue a ser o que foi.

É preciso começar a fazer, dentro e fora de nós, este tipo de desconstrução. Para que memória não se confunda com História. Não há forma de eliminar o que ocorreu. Vandalizar estátuas coloniais, não elimina o colonialismo. Devemos fazer o quê? Recontar estas narrativas de forma mais correcta, mostrar os vários lados. Os perigos de se conhecer uma história única são a ausência de visões sobre o mesmo facto histórico. Comecemos então a contar aos nossos jovens a história dos colonos e a história na visão do escravo. Comecemos por contar a visão do homem na sociedade patriarcal e a visão na mulher, que chega a ser despedida por ser mãe. É assim que se muda a memória futura, é assim que se educam mentalidades. Não é pintando ou decapitando estátuas que representam a história. Não é pilhando obras de arte. Não é destruindo templos. As marcas da história permanecerão incrustadas nas nossas dinâmicas para sempre. Mudar títulos ou palavras em livros porque representam actos racistas é simplesmente uma atitude imatura de alguém que não sabe contextualizar a obra no contexto em que nasceu. Alterar peças de teatro, eliminar filmes clássicos que ilustram épocas específicas, não é mais do que tapar o Sol com a peneira numa atitude criminosa e perigosa. Confrontem-se com a vossa sombra. A nossa sociedade tem de integrar essa peça do puzzle. O mundo ocidental tem de aceitar, de uma vez por todas, que cometeu muitas barbaridades (tal como outras sociedades, em outros tempos).

Temos de sair desse armário do colonialismo. SIM. Colonizámos, porque se colonizava. Conquistámos e fomos conquistados. Eram assim os tempos. Esta não aceitação do que fomos destruindo as cicatrizes dessas feridas de outrora, só fará – mais e mais – crescer dentro de nós esta sombra do proibido. Como o não dito se torna maldito, falemos então. Façamos palestras. Mudemos as aulas, as bases do ensino. Passemos aos nossos jovens a capacidade crítica e a visão de quem sabe que numa história entre 2 partes, existem 3 verdades. Permitamos às nossas crianças tomar lados. Deixemos que analisem todas as visões. Alteremos os livros educativos – que estão feitos seguindo um orgulho colonial pouco lógico – profundamente tendenciosos e incorrectos historicamente. Não caiamos no erro de dar as nossas crianças uma história única, pois a maior ignorância vem da nossa incapacidade de nos colocar no lugar do outro. É por aí o caminho. Não pela censura, pela destruição ou pelo vandalismo. Quem vandaliza a História, está mais colado à figura do colonizador do que poderá pensar.

Aceitemos então esse nosso passado. Abracemos a História para que possamos aprender com as anteriores eras. Procuremos, de futuro, alterar a memória dos jovens para que possam enriquecer-se com visões e experiências. É assim que se faz o caminho… caminhando, sem apagar as pegadas que nos mostraram o trilho feito.

Nota: a autora não usa o novo acordo ortográfico
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