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2014: Odisseia em Interestelar

Desde a cena de abertura, composta por uma imensidão de campos de milho, é claro que Interestelar foi embeber a sua inspiração em 2001: Odisseia no Espaço. O filme é composto pela mesma grandeza que o clássico de Kubrick tem, viajando pela promessa de nos levar do passado da humanidade até ao seu futuro e comandando um compasso calmo, que nos encoraja a ponderar sobre os temas que nos são apresentados pelo caminho. Desenvolve muitas questões, como é o caso da natureza do tempo e do espaço, ou o papel da humanidade na vastidão do universo, mas, inesperadamente para este género de filmes e para o estilo de Christopher Nolan, cujo trabalho tende a ser mais cerebral, todas as temáticas são exploradas de um ponto de vista muito humano. Interestelar, por exemplo, está interessado em saber como é que a Teoria da Relatividade irá afectar a nossa vida familiar, na mesma medida em que tenta compreender a teoria em si.

Interestelar desenvolve-se num futuro próximo e distópico, onde os Estados Unidos da América estão reduzidos em termos de poder, os militares fazem parte de um passado distante, a tecnologia foi usada até ao limite e a Terra, por causa de uma mudança drástica na atmosfera (fruto de uma perturbação magnética), está a viver uma era de Tempestades de Areia, que estão a destruir todas as plantações de alimentos a um passo cada vez mais acelerado e a deixar a população mundial sem forma de se alimentar. A história começa a ser contada na quinta de Cooper, um piloto e engenheiro excepcional, que vive num tempo em que a tecnologia não tem lugar no mundo e, consequentemente, em que ele não tem lugar nos céus a voar. Apesar de ser um agricultor infeliz, vê no seu trabalho a nobreza de quem consegue ser essencial numa sociedade repleta de pessoas que passam fome. A sua mulher faleceu, porque os recursos médicos que outrora eram comuns (nomeadamente, a Ressonância magnética) já não existem, e, por essa razão, encontra-se a educar o seu filho Tom, de 15 anos, e a sua filha Murph, de 10 anos, com a ajuda do seu sogro.

Um bom filme de ficção científica depende sempre da originalidade da forma como a sua premissa é desenvolvida e da sensação que o mundo criado transmite ao espectador. Algo que, infelizmente, a distopia criada por Christopher Nolan, situada numa quinta isolada do mundo e retirada do tempo e das implicações políticas que a perturbação magnética causou, não é totalmente convincente. Existem pequenas pistas que explicam a existência de uma pequena ditadura burocrática, muito patente na rigidez de exames que nega a entrada de Tom no ensino superior, na doutrina ensina nas escolas através de livros, que afirmam que a ida à Lua foi uma fabricação das lutas políticas realizadas na Guerra Fria, e, principalmente, no jogo de Basebol, onde é sugerida a aceitação colectiva da mediocridade. O que Nolan decide não abordar são os elementos sociais dos quais Cooper e a sua família parecem estar isolados, na sua quinta. Porém, quando este descobre uma anomalia a ocorrer no quarto da sua filha, consegue também descobrir as remanescências da NASA, sendo, automaticamente, recrutado para a missão que se encontram a preparar – enviar uma equipa de astronautas para uma galáxia distante, para encontrarem um novo lar para a humanidade. Uma expedição já havia sido enviada para explorar os planetas identificados e agora é necessário enviar uma nova equipa, com Cooper como piloto, para fazer a triagem entre os sinais que foram enviados e determinar qual será o melhor posto para iniciar a colonização.

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A ausência de aspectos práticos, como os treinos para a viagem pelo espaço, é um sinal claro de indiferença do director para a sensação de maravilha que possa estar a ser vividas pelas personagens que estão prestes a viver uma missão aparentemente impossível. Os debates científicos que acontecem ao longo da viagem espacial são os únicos momentos em toda a viagem que permite demonstrar a sensação de encanto e entusiasmo que os membros da expedição podem estar a viver, sendo que, por norma, o realizador preferiu deixar estes sentimentos para serem vivenciados pelo espectador. Nolan e o seu irmão, Jonathan Nolan, criaram uma elegante premissa, ao realizarem a viagem entre galáxias possível, através da passagem por um wormhole perto de Saturno, uma deformação espaço-temporal que é capaz de reduzir a distância entre dois pontos. As teorias que surgem dos detalhes desta “invenção” científica são irresistíveis e as especificidades do funcionamento de um wormhole e o que significa viajar através dele são alguns dos melhores detalhes que o filme tem para oferecer. É por essa razão que o “efeito especial” mais inspirador de Interestelar ocorre no momento em que o físico transformado em astronauta Romilly explica como dois pontos ficam mais próximos com um wormhole, recorrendo apenas a um pedaço de papel e um lápis. Uma cena que, aos olhos do espectador, consegue transformar a Física Avançada num autêntico milagre.

A história acaba por se tornar numa luta contra o tempo, com a revelação (tardia) de que a distorção espaço-temporal do wormhole afecta apenas aqueles que o atravessem, fazendo com que eles uma passagem do tempo diferente daquela que é vivida na Terra. Uma hora da travessia dos astronautas equivale a sete anos na Terra. Cada momento que passa reduz a hipótese de salvar a humanidade. Com a utilização inteligente da Teoria da Relatividade para criar um sentido de urgência e de crise, que obriga as personagens a escolherem ponderadamente as suas acções, fez do Tempo um recurso necessário à sobrevivência, tal como a comida, ou a água. Um aspecto que permitiu ao enredo crescer num sentido em que foge às grandes odisseias no espaço e aproximar-se mais da Odisseia de Homero, com a cada vez maior improbabilidade de Cooper conseguir reunir-se com os seus filhos, antes de falecer de velhice.

Foi emocionalmente devastante para Cooper abandonar a sua casa, no seu carro, mas é esse momento que marca a história criada por Christopher Nolan e permite-lhe desenvolver a premissa sentimental, que se centra na demonstração científica do poder do amor. Uma ideia com a qual o realizador se sente tão fascinado que acaba por afectar a demonstração da sua visão de viagem no espaço. Comparando a sua visualização de um wormhole e da viagem que se seguiu por um ambiente espacial repleto de perigos com a representação de Kubrick da viagem de David Bowman pelo Star Gate, em 2001: Odisseia no Espaço. Os efeitos especiais a que Kubrick recorreu inspiram-nos a ficarmos maravilhados com as descobertas que estamos a fazer. Estes efeitos têm espaço suficiente para nos fazer ter uma experiência imersiva na mesma vivência que o personagem principal está a ter, com o mesmo medo de quem se encontra a desbravar uma fronteira desconhecida. Em contrapartida, os efeitos que Interestelar apresenta são inteligentes e, acima de tudo, complexos, demonstrando todo o trabalho que foi devotado pela equipa de efeitos especiais. O universo aparenta ser vasto, com a pequena nave a ser normalmente renegada para um dos cantos do ecrã, ou perdida entre os anéis de Saturno. A representação do wormhole é deslumbrante, à medida que a luz é sugada e fica envolvida em torno da sua entrada, como se fosse uma bolha de óleo. No entanto e apesar disso, são desprovidos de espanto. Não são capazes de igualar a visão cósmica que supostamente deveriam sugerir. As imagens criadas pelo realizador aparentam ser apenas uma extensão de uma ideia, ou ilustrações do que poderá ser uma viagem pelo espaço, em vez de representarem a experiência dessa viagem.

O mesmo pode ser aplicada às personagens do filme, que se descrevem como sendo pioneiros e exploradores. São alguns dos primeiros humanos a experienciar a travessia de um wormhole e de um buraco negro, contudo, têm essas experiências sem qualquer sentido de admiração. A forma como as sequências no espaço são executadas trata esta viagem de forma excessivamente mundana, como se fosse uma singela ida para o trabalho, criando, assim, uma ligação superficial com o mundo e as pessoas que vivem nele. Existe a falta de espaço, por exemplo, para que Cooper, um piloto que finalmente tem a oportunidade de viajar entre as estrelas, consiga demonstrar contentamento pelo facto do seu sonho estar a tornar-se realidade.

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Como em tudo o que Christopher Nolan cria, existe sempre a questão de qual é o significado de tudo o que nos está a ser apresentado. Os seus filmes tentam-nos a criarmos uma tese pessoal sobre os significados escondidos, em parte, por causa dos seus personagens aparentarem estar sempre à procura de respostas. Em Interestelar, as personagens falam quase aforisticamente sobre a condição humana, os fantasmas, o tempo, a maldade e outras temáticas abstratas, como as questões que o poema de Dylan Thomas levanta sempre que é referido no filme. Felizmente, a Astrofísica é o meio e não o fim desta viagem e o centro gravitacional do filme está muito mais alicerçado na Terra do que no espaço. Pretende-se escalar a profundeza do ser humano, pondo em confronto o egoísmo contra o altruísmo e a moralidade contra o instinto de sobrevivência. À medida que a expedição intergaláctica se aproxima do seu destino final, começam a surgir problemas que exigem decisões difíceis e que os levam a ter de optar entre um regresso a casa e a continuação da sua missão. Uma missão que esconde mais do que se pensava e que leva os personagens a enfrentar uma desilusão desumana. “A Natureza não é malévola”, diz Brand em determinado momento. “A única maldade que existe no espaço é aquela que trazemos em nós.”

Em Inception foram levantadas questões que não tiveram respostas claras, enquanto que Interestelar fornece todas as respostas, porém, a muitas questões que podemos não compreender. Vê-lo é ter a certeza que estamos a ser testemunhas de um Christopher Nolan no seu mais alto nível conceptual, mas também na sua versão menos acessível ao público amante de blockbusters, porque os conflitos são substituídos pela exploração e a acção pela meditação e pela reflexão. Paralelamente, é possível, pela primeira vez, ver o realizador a abrir não só a sua mente, como o seu coração, demonstrando sentimentos profundos, que não haviam sido explorados nos seus trabalhos anteriores. Não é coincidência que, durante as gravações, o pseudónimo do filme fosse Flora’s Letter, em homenagem à sua filha. Num desejo de voltar a instaurar a curiosidade pelo universo numa geração que trata por tu o universo digital e ancorado num profundo amor paternal, conta uma história que é tanto sobre o sentimento, como sobre o pensamento. Apesar de o centro emocional do filme não ter sido correctamente articulado, comparativamente aos conceitos apresentados, este, no fim, não perde o impacto que deveria ter.

Em suma, a carta de amor de Christopher Nolan à viagem espacial e à exploração do universo pode requerer alguma paciência, por causa do compasso de desenvolvimento da história e a nossa capacidade de compreender teorias complexas sobre o espaço-tempo, mas, quando os créditos finais aparecem, é impossível não sentir uma grande recompensa emocional pelo espectáculo visual que acabámos de ver.

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