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Just Mercy

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Monroe County, Alabama, Estados Unidos.

O ano: 1987.

Na sequência do assalto a uma lavandaria, Ronda Morrison, de apenas 18 anos, é morta.

Não estamos no grande ecrã. Ainda não. A ação decorre num dos estados norte-americanos com a maior taxa de sentenças e condenações aplicadas a negros.

De acordo com um estudo lançado em outubro de 2021 pela Drª Ashley Nellis, o número de afro-americanos a cumprir pena em prisões estatais é 5 vezes superior ao de americanos caucasianos. Esta é a conclusão do estudo publicado no site The Sentencing Project, organização norte-americana cuja missão é analisar e promover respostas ajustadas ao crime que minimizem a prisão e a criminalização de jovens e adultos, promovendo justiça racial, étnica, económica e de género.

O assunto não é novo, o preconceito muito menos. O filme do qual queremos falar intitula-se Just Mercy – “Tudo pela justiça”, em português. Realizado por Destin Daniel Cretton, é inspirado em factos verídicos ainda que, quanto mais que se oiça, se saiba e se fale sobre discriminação racial, todo este enredo pareça impensável. Volvidos mais de 30 anos sobre a condenação, a História continua a não aprender consigo própria e nós, enquanto comunidade global, também não.

Existe na cronologia do preso Walter McMillian um pouco de tudo: abuso de força aquando da detenção, testemunhos falsos, ausência de provas físicas, impressões digitais ou algo que coloque McMillian naquele lugar, àquela hora, a não ser o depoimento de Ralph Meyers, um cidadão com registo criminal que em entrevista ao programa 60 minutes afirmou ter cometido perjúrio alegadamente aceitando um acordo com as autoridades para redução de pena num outro caso em que respondia por homicídio.

E se até aqui já soa a argumento cinematográfico, juntemos à equação a pena de morte. No filme, as vidas das duas personagens cruzam-se no momento em que McMillian está há 6 anos no corredor da morte e recebe a visita do recém formado advogado Bryan Stevenson.

Bryan Stevenson. Advogado e ativista dos direitos humanos. A luta que trava contra o sistema legal americano começou precisamente com o caso retratado no filme e que nasceu do livro que publicou em 2014. A autobiografia narra o percurso do jovem advogado em início de carreira e o nascimento da Equal Justice Initiative (EJI), a organização de defesa dos direitos humanos que cria para analisar e trabalhar casos de alegada má conduta ou reveladores de notórias falhas processuais. Descontente com a forma como o sistema legal processa concretamente os casos de afro-americanos.

A organização de Stevenson interessa-se pelo caso e o advogado começa um percurso de luta: contra o sistema, o poder instituído, a teia de interesses políticos, a desconfiança dos familiares e amigos de McMillian, a comunidade que não se sente representada pelas forças judiciais. No filme há tempo também para conhecermos a realidade dos prisioneiros que se encontram nesta situação particular: a eminência da execução. Vamos por partes.

Quem é quem? Vamos conhecer os intervenientes e começamos no ecrã, no grande. Abram alas para quem conta histórias como ninguém, dois extraordinários atores negros da atualidade: Michael B. Jordan, na pele de Stevenson e Jamie Foxx num dos mais elevados papéis da sua carreira: o prisioneiro no corredor da morte Walter McMillian. Aqui Jamie Foxx não tem o papel principal. Aqui, não é o criminoso a personagem central tampouco o crime pelo qual é detido e condenado à morte. Mas ainda assim é impossível ficarmos indiferentes ao desempenho de Foxx. Do timbre de voz que sai de uma garganta garroteada, frustrada e acima de tudo derrotada e conformada, a momentos apoteóticos de plena libertação, o ator consegue que sintamos a impotência da luta contra o sistema. Até quando consegue um homem manter as forças para lutar pela sua inocência? Em que altura se resigna e assiste ao desenrolar de uma condenação à morte?

A Michael B. Jordan cabe a difícil tarefa de vestir a pele do jovem advogado. O próprio ator admite que foi um desafio encarnar alguém real e tentar transpor para o ecrã o carisma, a tenacidade e a perseverança que caracterizam Stevenson. Para Jordan o assunto é atual e pertinente. Urge à população global, e à norte-americana em particular, discutir amplamente as falhas no sistema judicial que tornam tão incrivelmente fácil a condenação de uma pessoa baseada no estigma da raça ou posição social que ocupa.

Há cenas que ficam gravadas a ferro na memória: A sala de visitas na qual advogado e cliente conversam, primeiro sobre táticas de defesa, depois sobre a vida e o tempo… uma sala asséptica, branca, fria mas que se enche de gargalhadas; o desespero confidenciado entre dois homens que enfrentam o mesmo fim, que nem sequer se podem ver, separados que estão por uma parede, cada um em sua cela, vidas contíguas que partilham a coincidência de um corredor, o da morte, entre companheiros de provável destino num diálogo tão intimista que a proximidade física da lente da câmara chega a desfocar a cara de ambos para permitir que nos foquemos nos olhos de cada um, as janelas para a alma…

Uma breve pesquisa dar-nos-á a conclusão deste caso. Não é spoiler, é História: McMillian vê revogada a sentença de morte. Sai em liberdade após 6 anos no corredor. O sistema judicial perde. Perde o caso, a credibilidade aos olhos de uma população que não pode jamais devolver a este homem os anos que perdeu e a vida que esteve na eminência de fugir-lhe às mãos do Estado. A sociedade ganha uma organização que se importa mas ao mesmo tempo, perde. Perde a vã certeza de que as coisas funcionam.

Mas no fim de contas, também perde outra Justiça. Aquela que devemos a Ronda Morrison. Porquê? Porque até hoje jaz sem que o verdadeiro culpado seja trazido perante aquela que era suposto ser cega…à posição social, à religião, ao género e… à cor de pele.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico

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Mónica Santos
Em miúda gostava de inventar, agora escrevo; colava as vistinhas nos intervalos para devorar publicidade, agora sou copywriter; lia em voz alta na escola, agora faço locuções, destaquei-me na praxe quando pediram que dissertasse sobre "Pistões e panelas de pressão" e com isso ganhei rodadas; um dos empregos que tive, consegui-o com um texto sobre flatulência, e era autobiográfico...sou locutora, narradora, produtora de rádio e pagam-me para escrever. Gosto muito de ser mercenária e dos desafios que me arremessam. Lutei contra o Acordo Ortográfico mas agora damo-nos muito bem. Quis experimentar a liberdade de brincar com a escrita e encontrei no Repórter Sombra o perfeito parque de diversões: aberto todo o ano e sem torniquete à entrada....ah, e tenho os bolsos cheios de fichas!

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