Foi numa sessão “algo perdida” de um final de tarde de dia de semana na Cinemateca que vimos O Sul. Erice era então um apelido desconhecido para mim e naquela época, entre 2010 e 2012, esta sala lisboeta e o cinema que ela me proporcionava configuraram o refúgio ideal para obter o que não encontrava na vida.
Umas vezes com a Inês, outras (a maioria) sozinho, lá ia(mos) depois do trabalho para um (ou dois) filmes. À sessão das sete, podia, caso a vontade, a curiosidade, a necessidade e um certo vazio cá fora assim o ditassem, juntar-se o filme da noite, às nove e meia.
A par do torrent (que coincidiu nesses anos), foi nesse tempo que mais experimentei cinema diferente: europeu ou asiático, mudo ou sonoro… conheci Satyajit Ray, Max Ophuls, Tony Richardson, os portugueses Fernando Lopes e Paulo Rocha (Uma Abelha na Chuva e Os Verdes Anos, ambos com a presença dos próprios – viriam a falecer pouco depois)… e Victor Erice.
Estreámo-nos com o peculiar realizador espanhol na sala Luís de Pina – reservada para os filmes com menos público – e O Sul converteu-se numa experiência cinematográfica como poucas. É difícil explicar quando sabemos estar na presença de uma obra que tem tanto a ver connosco, e até arriscamos avançar algumas razões, mas sabemos perfeitamente que os motivos mais fortes para nos reconhecermos e sentirmos em casa perante um vendaval de sensações, não se explicam: ultrapassam a razão e a linguagem, aguardam por palavras que lhes dêem corpo, textura, vida.
Vimos O Sul e no fim eu não sabia o que achar. Nunca o sei mal um filme termina… há sempre um período de nojo depois do qual começa a assentar a poeira. É então que o trigo se separa do joio, e, tal como a imagem que começa a aparecer na película ao ser revelada na câmara escura, assim também o sentimento que um filme deixa gravado em mim se vai definindo. O Sul foi-me apanhando deste jeito, nas semanas seguintes àquele fim de tarde ou noite (não me recordo a sessão em que passou).
Vivemos num mundo em que temos que vomitar, com uma pressa aflitiva, uma opinião imediata sobre tudo. Felizmente, quando escrevo sobre Cinema ou Literatura, posso fazê-lo ao meu ritmo, sem as pressas dos críticos em cima do momento. Por vezes vem-me algo à mente anos depois, sobre um filme que não é do momento, mas de sempre, ou que se encontra escondido como um tesouro camuflado no fundo do mar e uma ondulação mais revolta agita as areias e ele solta-se, na altura em que algum programador dá por ele e resolve mostrá-lo numa sala de projecção.
O Sul conta a história de Estrella, uma menina que deseja conhecer o Sul. Esse lugar eternamente desejado, vai sendo construído na sua esperança, ao mesmo tempo que a relação com o pai e a natureza subtil da mesma se vai desenvolvendo à nossa frente. Por problemas de financiamento o filme ficou a meio e o Sul, para onde Estrella iria (que seria retratado na segunda metade), ficou por mostrar. Curiosamente, o que poderia ser uma lacuna imperdoável, passível de destruir uma obra, acabou por envolvê-la numa aura algo onírica, onde o subentendido ou, melhor, o sugerido, resulta numa experiência enigmática que só enriquece a experiência do espectador.
Em 1983, talvez a técnica do cinema espanhol não estivesse tão desenvolvida, ou talvez Victor Erice tivesse intenção de filmar com os cenários, guarda-roupa, luz e fotografia, como se fazia décadas antes. Da cabeça de Erice, tudo é possível. Esta conjugação entre o que fica por dizer e o olhar do realizador sobre a história coloca este filme numa época e num lugar indefinido, provavelmente indefinível, e isso foi o que me permitiu abraçá-lo e trazê-lo até mim, reconhecer nele pedacinhos do que me diz qualquer coisa e recordá-lo hoje, doze ou treze anos depois, sem que nunca o tenha revisto nesta década, tendo ele mantido intacta a força e a riqueza que naquelas semanas me foi conquistando.
Saquei as restantes duas longas-metragens de Erice, O Espírito da Colmeia, de 1973, e O Sol do Marmeleiro, de 1992. O primeiro configura outra obra-prima. O segundo nem tanto (para mim). De qualquer forma, poucas são as experiências como as primeiras e O Sul daquele fim de dia da Cinemateca, com a Inês numa sala mínima, é irrepetível e detentor de uma originalidade impossível de reviver.
Em 2023, trinta e um anos depois, Victor Erice realizou Fechar os Olhos, um exercício sobre a memória filmado com extrema sensibilidade, apesar de não ter a força e a genuinidade das restantes três películas. Hoje o cinema é outro (quiçá a longa ausência do mestre espanhol se deva a alguma desilusão com a pressa da Sétima Arte dos dias de hoje, vertigem tão antagónica ao tempo degustado dos seus filmes) e talvez Erice se tenha confrontado com a adesão forçada a uma certa forma de filmar, mais técnica e menos sentimento, para poder levar um filme por diante. De qualquer forma, conseguiu ludibriar bem a indústria para levar a sua dama ao altar. Dentro dos constrangimentos actuais, saiu vitorioso. Mas nada é comparável com uma forma de fazer cinema ao sabor da vontade, do impulso de quem se vê na iminência de poder criar algo somente por ter algo para dizer. É um luxo, e Erice viveu esse luxo na plenitude. Rumo ao Sul que ele nos apresentou e que ainda hoje persigo. Perseguirei eternamente.