Este ano comemora-se o centenário de José Saramago, o único escritor português que recebeu o Prémio Nobel da Literatura. Por terras lusas ainda pode ser um nome que passa ao lado de alguns, mas para os que o conhecem, em termos internacionais, a sua marca é potente. Saramago enche a alma de muitos e os seus livros são viagens longas que se fazem com calma.
Saber ler é um acto de amor próprio. É alargar os horizontes, deixar-se levar por caminhos ignotos e toscos, visitar casas que nunca o foram, conhecer seres inexistentes e ser a perfeita testemunha de acontecimentos vividos com a imaginação. Os braços estendidos são fortes e firmes como ramos prontos a desabrochar.
A imaginação é prodigiosa e permite bater todos os recordes, banir fronteiras, esticar limites e voar até onde o coração o permitir. Quem não a fertiliza incorre no crime de mirrar até secar. Sem essa ferramenta tudo parece oco e sem cor, monótono, um acorde de leve desavença e surdez emocional. Uma pobreza maior.
Saramago mergulha, ou melhor, faz os seus muitos leitores mergulharem num mundo tão vasto e prodigioso que as suas ficções passam a ser metáforas diárias. Algumas frases são referidas como mantras e embrenham-se quais lianas que se esticam e enrolam. Certas personagens ganham vida própria e seguem rumos que nunca se imaginaria.
José Saramago é um caso muito interessante, sobretudo paradigmático, do escritor autodidacta pois a sua formação, um serralheiro mecânico, não seria, de todo, uma rampa de lançamento para a escrita. Contudo as letras foram a sua paixão e a colaboração com jornais e revistas não se fez esperar. Daí a ter a sua veia divulgada, foi um pequeno passo de gigante.
Levantado do chão, uma história comum, passada com uma família alentejana, dá-lhe visibilidade pois, além de focar temas pertinentes e queridos a quem lutou durante anos contra a ditadura política instaurada, tem sabor de realidade bem recente. A lida do campo e a reforma agrária são marcos da vida nacional, tempo que não fica esquecido em todos os sectores.
O Memorial do Convento apresenta-nos os olhos da Blimunda, que são o capuz de cores sem definição, mas com uma tremenda intensidade, contudo têm o condão de emocionar. Baltazar é o diferente, o deficiente que não tem medo de nada e segue. As transgressões, aqui, são comuns. A luta de classes não é esquecida. Os marginais e diferentes são parte do todo, tijolos de uma dura sociedade que é mostrada sem filtros.
Claraboia é um relato fiel de um certo tempo em que se vivia numa Lisboa que já não existe. Um prédio que encerrava vidas escuras e duras. Uma célula viva de dores que sobrevivam conforme lhes era possível. Singelo e terno é o reflexo de quem deixou as origens e se aventurou na grande cidade. Remendos para gente muito remediada com almas que não podiam ser cosidas e muito menos apanhadas como malhas de meias.
O Ano da Morte de Ricardo Reis, uma ligação quase mágica com Fernando Pessoa, dá nova vida a quem nunca a teve. Mistura fina onde se espelha uma sociedade que vive em repressão e mergulha num cinzento profundo. Contudo ainda assim há uma luz que brilha no fundo do túnel e tem nome de mulher, Marcenda ou Lídia, baús de surpresas. Mulher, símbolo que capta emoções e recusas. Mulher, uma miríade de seres.
Ensaio sobre a Cegueira antecipa um período que ainda se vive. Não ver, ou não querer ver a realidade e saber criar laços para sobreviver num mundo onde nada se mantém e tudo desaparece. Uma profunda e eficaz lavagem cerebral em que os mais lúcidos sobrevivem com grande dificuldade. Total controlo de massas e doutrinação perfeita. Um exército de amorfos.
Estes são alguns dos livros que saíram da sua pena. Meras escolhas, sem nenhuma hierarquia. Outros, igualmente curiosos, apelam a leitores ávidos de essências especiais. Com polémicas e muita criatividade, a sua escrita é bem complexa e cheia de artimanhas. Há que a saber descodificar e sentir.
O nome Saramago consegue captar a atenção de todos os quadrantes. O certo é que ninguém lhe fica indiferente. Amado e/ou odiado, há quem não saiba destrinçar entre o homem e o autor e enrole a massa como se fosse um bolo cheio de ingredientes fora de prazo. Não deve ser assim. Quem escreve dá a sua alma para que os outros a usem sem nada receber em troca. Que injustiça de pensamento.
Sendo ano de celebração, de centenário de um escritor galardoado com o prémio de maior prestígio na literatura, aliás o único português que teve a honra de o receber, poder-se-ia pensar que as vendas aumentariam. Nada mais errado, a procura das suas obras, nas muitas livrarias, não sofreu qualquer alteração. Apenas as obras de estudo obrigatório se continuam a vender. Uma miséria intelectual que terá de ser sanada.
O tempo não pode parar. Somente existe a possibilidade de ser reinventado com mestria. A verdade e a realidade estão em todas as suas letras e frases. Para a embalar em doces e suaves melodias, as suas personagens, as que saltam graciosamente em cada obra, são tão deliciosas que dão vontade de as abraçar e responder ao seu apelo enfeitiçado.
Gostei Margarida, impressiona, saber, que as vendas não aumentaram, com atribuição do Nobel. A maior lição que aprendi, com o meu livro, foi, ficar a saber, que ainda estamos muito aquém daquilo que seria desejável. como povo culto, que valoriza a história!… Não é de agora, vem de séculos. Só fizemos a nossa alfabetização, depois de 1974, a dos Alemães, foi feita em 1830, mesmo assim, tiveram o Itler e quem o apoiou. Dá que pensar? Dia feliz.
Ainda há muito trabalho para ser feito.