Quando era pequena, ir ao circo, era um ritual que anunciava o Natal.
O emprego do meu pai, como outras empresas ainda o fazem hoje, oferecia aos filhos dos empregados essa possibilidade, facto que ocorria até aos 12 anos. Havia a “festa do Banco”, onde havia espectáculo de música, teatro e prendas. E depois, no mesmo mês, de festa em festa, imbuídos do espírito festeiro, havia o circo. Também eu gostava de ir ao circo.
Com o olhar nivelado à minha altura infantil, toda a praça do circo se apresentava extensa e colorida, imponente e chamativa. A música era contagiante, os brilhos eram efusivos, e as crianças eléctricas saltitavam nos bancos, curiosas com a bancada em escada, e nem o frio, que se fazia sentir dentro da tenda, esmorecia o entusiasmo. Tinha uma particularidade, que me fazia sentir diferente das outras crianças: não apreciava palhaços. Não os temia, não me faziam qualquer confusão ou desconforto, simplesmente não lhes achava piada. Por isso, e talvez porque tenha sido consecutivamente confrontada com o clássico número do palhaço pobre versus palhaço rico, achava-os monótonos e previsíveis. Acredito, também, que o facto de as professoras terem pedido, inúmeras vezes, que os alunos fizessem composições sobre o circo e sobre aquele clichê do palhaço que ri com vontade de chorar, tivesse contribuído para esse enfado. Nessa altura, divagava o olhar pela plateia, e concentrava-me a ver a discreta preparação das cordas e travessas para os trapezistas e equilibristas, que acontecia em simultâneo, num campo afastado da grande cena dos palhaços. Gostava dos trapezistas, que me retiravam o ar, e achava que deviam ser muito corajosos, para além de graciosos e leves. Gostava dos equilibristas pelas mesmas razões, presumindo o tempo despendido em ensaios, imaginando que no meu caso, desalinhada e trapalhona, daria significado à palavra jamais…
O que eu gostava, o que me fazia delirar, viajar e comover, eram os animais de circo. Hoje, esta consideração tem em mim um efeito que me transporta rapidamente da ternura à vergonha. Poucas ideias me deixam tão sem definição. Entravam os cães, vestidos de calções e camisola, e jogavam à bola. Ou de saia, e dançavam. Depois vinham os animais bravios, os leões, os ursos, os tigres, os elefantes. Pareciam imensos, na robustez e na ferocidade, como se tivessem vindo directamente da natureza. E eu, metro e meio de gente, achava maravilhosos os seus gestos, os seus bailados, as suas sequências. Hoje tenho muito embaraço por tudo isso. À época, com os meus olhos de menina, eram um misto de natureza extraordinária, com um suposto entendimento com os humanos, que com eles tinham partilhado algum saber, ensinando-os a actuar, quem sabe mesmo a saborear o prazer da admiração humana. Como se lhes fosse natural, numa cooperação voluntária, interagindo com o homem, para gáudio deste. Os seus rugidos, as suas reacções de negação, a que se seguia um metálico estalo do chicote, não parecia fazer surtir em mim qualquer alerta. Não tenho consciência do que pensaria, mas talvez achasse que de facto seria apenas um fazer crer, uma técnica de diversão, para tornar o final mais difícil de concluir, majorando a coragem do domador. Ou talvez fosse só inocência. Ou eventualmente achar que nunca na vida fariam nada contrariados, porque se libertassem a sua fúria animal, não sobraria domador para contar. Enfim, acanho-me da minha puerilidade. Pior, retraio-me em profundo constrangimento.
Dentro de 6 anos, o uso de animais selvagens será completamente interditado, após um período de preparação. Foi avaliada a sua disfunção. Foram reconhecidos maus tratos. Foram retratadas practicas de adestramento perfeitamente dignas de quadros de tortura. Havia, ao tempo, alguma fabulação ao redor das práticas circenses que poderia também contribuir para um amainar da consciência das condições animais. Era comum elogiar-se a coragem dos circenses, frequentemente considerada gente sem terra, de vida dura. Outras vezes, pelo contrário, e nisso os livros e as séries infantis também ajudavam, eram relacionados a mistérios ligados a propósitos de roubos e tráficos vários. No entanto, sempre, sempre, a beleza e o rosa esvoaçante no trampolim em balanço, a contrabalançar a crueza da vida agreste. Se bem que hoje nada poderei fazer relativamente ao que apreciei no passado, na minha ignorância, inocência ou perfeito distanciamento da realidade, uma coisa posso fazer: aprender com isso. Agora que sou adulta, posso reapreciar as minhas opções e gostos, no sentido de ir além do óbvio e do espectáculo. Posso indagar da naturalidade de certos comportamentos. Posso questionar métodos. Posso investigar condições. Enfim, posso ver além do que me querem mostrar.
Em tempos idos, também eu ia ver os cãezinhos nas montras. Hoje, é proibido, fruto do evoluir do entendimento comum. Hoje, distinguem-se criadores de criadeiros. No passado dogmas, hoje negados pela ciência, defendiam que as fêmeas deveriam ter pelo menos uma ninhada antes de serem esterilizadas. Não faz qualquer sentido e quem circule nos meios de apoio a animais abandonados facilmente percebe que gerar 8 crias num ano dá origem a uma pirâmide em expansão plena em poucos anos. Ainda que consigam garantir donos para essa ninhada, conseguirão controlar as ninhadas vindouras? Provavelmente não.
As touradas continuam em debate, e não me esgotando em argumentos óbvios, que rapidamente perdem o foco, evoluindo para conversa de surdos, prefiro entrar pela ironia e dizer a quem a defende que da próxima vez que arrancar um dente, peça expressamente para o fazer sem anestesia. Tradição acima de tudo. Não tenho qualquer dúvida que um dia serão consideradas completamente arcaicas, quando não apenas ligadas a homens de veludos e rendinhas, na pretensa exibição da sua masculinidade. Talvez só cheguemos lá pela via dos impostos, que temos sempre inveja dos que pagam menos. Enfim, a palavra que urge é: evolução. Lá chegaremos, um dia.
Não sou vegan ou vegetariana, ainda não consegui chegar a tanto, nem sei se algum dia aí chegarei. A questão sobre que me debruço hoje é que é possível evoluirmos continuamente na forma como pensamos, agimos, exigimos saber. Escondo a cara de mim mesma, quando me vejo menina de tranças, a bater palmas ao urso que saltou, mas não fiquei por lá. Errar é humano, questionar é inteligência. Permitamo-nos mudar de opinião. Não é falta de consistência, é evolução.