O Congresso (2013), Stanislaw Lem e os Estudos Futuros – Parte 1

O Congresso” não é um filme fácil de processar. Se o tivesse de resumir a uma palavra, qual escolheria? Estranho? Belo? Complexo? Alucinógeno?… Eleito como melhor filme de animação pelos Prémios do Cinema Europeu em 2013, contou com a cooperação de vários países: França, Israel, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Polónia. Sendo o resultado um live-action/animação de uma beleza inigualável. Lembro-me perfeitamente a primeira vez que me deparei com este filme. Era uma daquelas noites de insónias, estava eu prostrada no sofá a altas horas da manhã. Depois de um zapping molenga ao sabor de algum snack gorduroso e viciante, encontrei a hora mágica da RTP 2. Sabem, aqueles filmes que nunca passariam em horário nobre. Desde logo me cativou pela exposição tão intimista das personagens, os close ups, o discurso cru e as emoções tão bem explícitas nos mais mínimos movimentos dos músculos faciais. Robin Wright que se interpreta a si mesma, numa versão alternativa de futuro, dá-nos a interpretação da sua vida.

Porque aqui Robin Wright é Robin Wright, por muito fantasioso que seja o argumento. As incertezas como artista, a luta por vingar num meio em que aos 44 já é considerada como em fim de carreira. Com a inocência que trouxe a “The Princess Bride”, ou a beleza triste de Jenny em “Forrest Gump”, aos 24 anos já tinha atingido o pico do estrelato. Nesta versão fictícia, Robin tem dois filhos: Sarah (Sami Gayle) de espírito livre e rebelde, e Aaron (Kodi Smit-McPhee), que, devido a uma rara doença, está a perder gradualmente a audição e a visão. O rapaz, de mente brilhante, é obcecado por aviões e as cores do céu, constrói complicados papagaios de papel e percebe o mundo de uma maneira única e especial. Devido ao estado do filho, Robin teve de recusar vários papéis à última da hora, o que custou milhões à Miramount Studios (uma sátira à Paramount). É com esta premissa que começa o filme: uma última oportunidade, um último contrato com a indústria da sétima arte, mas o que lhe sugerem desta vez é muito mais do que um simples papel em mais um filme…

Novas tecnologias permitem agora scanear um ator, não só cada canto do seu corpo, como também as suas expressões e emoções. Através de um avançado programa, conseguem então transportar a imagem do ator e manipular em vídeo uma versão credível e realista. Sem as incertezas, as recusas de interpretar certas cenas, as drogas, os divórcios e todos os dramas adjacentes à condição humana. É uma nova era, os atores poderão ser para sempre jovens e belos e os estúdios livres de fazer o que quiserem com eles. Digo, com o clone digital. Esta obsessão com a noção instituída de beleza, com a limitação do belo apenas ao que é jovem, denegrindo o envelhecimento, como se fosse quase um crime. É algo que existe no mundo fora do ecrã. Esta sátira futurista acaba por ser bastante contemporânea e é curioso como, achando que estão a revolucionar o cinema, desprovendo-o de humanidade, estão, na verdade, a condená-lo ao seu fim. Robin, apesar de recusar a princípio, acaba por não ter outro remédio senão aceitar, pelo bem do seu filho.

Viajamos vinte anos mais tarde e o mundo já não é o que era. A manipulação tecnológica é coisa do passado, agora a tendência é o uso da química como meio de entretenimento. Mais concretamente, o uso de drogas que criam alucinações onde as pessoas se veem a si e ao mundo como se fizessem parte de desenhos animados bizarros. No meio do deserto, existe agora a cidade de Abrahama: zona restrita animada, onde só se pode entrar ao inalar uma ampola psicotrópica que transporta os habitantes do mundo real ao animado. O mundo perceptível é, na verdade, criado pela mente de cada um, onde todos os humanos têm uma versão avatar de sí mesmos. Robin, com o intuito de renovar contrato, é convidada a visitar a sede da Miramount que entretanto terá produzido uma série de filmes comerciais (e horríveis) usando a sua imagem e é a empresa por detrás da revolução química. Ao chegar ao hotel, Robin encontra-se em pleno Congresso Futurológico e começam então as referências à obra Congresso Futurológico, escrita pelo autor polaco Stanislaw Lem, na qual Ari Folman, o realizador, se inspirou. Pormenores como a importância dos ovos quentes, ou os números que aparecem por todo o lado ao qual não nos é dada uma explicação no filme e que só compreendemos numa segunda visualização, depois de ler o livro, não podendo evitar sorrir em confidência.

Nunca foi intenção de Folman reproduzir totalmente a obra de Lem para a grande tela, como o próprio terá afirmado. Usou-a apenas como inspiração, sacando os elementos essenciais de um futuro sobrepopulado, onde as pessoas preferem viver numa ilusão do que no degredo que se tornou o planeta terra, acrescentando a sátira à indústria do entretenimento, pormenor que não existe de todo na obra do autor polaco.

Tal como era de esperar, manipular a imagem dos atores não foi suficiente para Jeff Green (Danny Huston), o cabecilha por detrás da Miramount. Os guionistas dependentes de antidepressivos, os designers alcoólicos, os animadores sempre atrás das deadlines, o pessoal dos efeitos especiais, os idiotas que se apaixonam pelas personagens digitais… Tudo isto será em breve um empecilho do passado, começa a era da “escolha livre”, como lhe chama o magnata. Uma era em que com uma pequena ampola, qualquer humano se poderá tornar no que quiser. Se Robin assinar o novo contrato, tornar-se-á um produto, uma fórmula química que pode ser consumida e tornar as fantasias do cliente “reais” (sendo na verdade um estado alucinogéno).

O Congresso Futurológico é um sucesso, as multidões rubram com o discurso de Reeve Bobs (sátira a Steve Jobs e as suas apresentações), o orador, que lhes promete uma vida sem frustrações, sem invejas, sem egos. “Têm um sonho? Sejam o sonho!” A promessa é ao mesmo tempo tentadora e aterradora. Quando forças rebeldes atacam o congresso para impedir que as novas drogas saiam para o mercado, Robin é apanhada no meio de uma guerra química sem precedentes. A exposição excessiva a alucinogénios faz com que a considerem incurável, uma vez que já não consegue distinguir o real da ilusão química.  É então conservada por criopreservação até que se descubra uma cura.

Passam-se muito anos e Robin acorda num mundo completamente mudado. Aqui, onde o tempo é subjetivo e as cidades feitas de jardins suspensos com todas as cores do arco-íris, desapareceu o ego. Desapareceu a necessidade de competição e por consequência a violência, as guerras. Todos são belos, jovens, radiantes, exultando serenidade e sensualidade. Robin apaixona-se por Dylan (Jon Hamm), que outrora fora o responsável por animar a imagem digital da atriz. Juntos deixam-se levar por esta nova realidade estranhamente pacífica onde podem literalmente voar e viver como quiserem. Mas rapidamente a vontade de encontrar o filho leva Robin a deixar para trás o único homem que alguma vez a amou verdadeiramente e consequentemente o mundo químico, onde a humanidade vive feliz. Porque  fora do encantamento psicotrópico, a realidade é o completo oposto: cortejos de zombies de olhar apagado, sujos e escanzelados por ruas nauseabundas. As cidades são ruínas, a poluição irreversível. Os poucos que estão fora, mantêm a população em estado dormente. Esperam taciturnos pela morte e invejam os que morrem felizes, aos poucos.

O final desta obra prima é qualquer coisa de… extraordinário. A animação é bela, é estimulante, prende-nos ao ecrã. Robin descobre que o filho completamente cego e surdo, desesperado e já sem esperanças de voltar a ter a sua mãe de volta, decidiu finalmente, entrar no mundo químico. Não consigo evitar. Correm-me lágrimas gordas. Quando Robin vê a vida do filho pelos olhos deste, percebe finalmente como sempre viu o mundo (o que outros só conseguiram através de drogas) e, no fim, torna-se ela mesma no filho e encontram-se um ao outro para lá do real. Ou pelo menos, assim acredita Robin que escolhe deixar-se perder no mundo das ilusões químicas e é finalmente feliz para sempre.

Tal como em Stanislaw Lem, estagnamos na verdade esmagadora de que uma sociedade ideal, uma utopia nunca passará de uma ilusão. Na sua obra de sci-fi, Congresso Futurológico, explora o que seria um futuro onde tudo, absolutamente tudo nos é sugerido por engolir um comprimido. As crianças aprendem a ler e escrever bebendo refrigerantes ortográficos, mas não existem livros. As enciclopédias e os manuais são consumidos e digeridos. Existem drogas para incutir paz ou raiva. Existem drogas para cometer crimes de consciência limpa. Até existem drogas que criam uma dupla consciência com quem podemos discutir sobre qualquer assunto, determinado por uma droga diferente, tirando a necessidade de contacto humano de todo.

A versão do livro é muito mais crua. Quando a personagem principal, Ijon Tichy, levanta o véu, depara-se com um futuro alternativo onde a realidade é mil vezes mais catastrófica do que no filme. Imaginado para o ano 2039, mas escrito na década de 70 do século XXI, Stanislaw Lem, descreve um futuro que não será assim tão impossível se tivermos em conta a destruição maciça que o ser humano está a provocar ao seu próprio planeta, no presente. Não existem animais, a comida é sintética e disfarçada com dezenas de drogas para dar a ilusão de um permanente repasto natalício. A diferença é que no filme as pessoas têm a escolha de viver na ilusão, enquanto que no livro, tudo não passa de uma forma de ditadura engendrada por um só homem.

Mais não conto e convido-vos a ler esta curta obra, publicada em Portugal pela Editora Caminho em versão de bolso, a qual se pode encontrar facilmente em qualquer biblioteca municipal. Preparem-se para um mundo tão rico em pormenores que vos vai dar a volta à cabeça. Lem inventa novas palavras futuristas, chego até a procurar algumas em vão no dicionário (pobres tradutores, que tarefa!) e deixo-me levar pelo imaginário de um homem que, tal como H.G. Wells ou Jules Verne, conseguiu especular e acertar em tecnologias que eram impensáveis nas década de 50 a 70, mas hoje em dia fazem parte do nosso quotidiano. Coisas como tablets, e-books, a internet, a Google, os smartphones, a impressão 3D, entre muitos outros. Deixo aqui um link interessantíssimo da revista polaca Culture.pl intitulado de 13 Things Lem Predicted About The Future We Live In”.

Estou obcecada com este ramo do sci-fi que é muito mais do que fictício. Stanislaw Lem conseguiu prever coisas reais, coisas que levariam décadas a concretizar-se, simplesmente analisando as condicionantes do passado e do presente. Considerava-se um futurologista. O que é a Futurologia, perguntam-se vocês.  Deixo-vos agora, ou assim espero, com uma pontinha de curiosidade e peço-vos paciência, enquanto escrevo a segunda parte deste artigo.

Até já.

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