Câmara de Lobos. Ninguém é indiferente à sua gente, à gastronomia, às paisagens, ao vinho, poncha e nikita, aos dentinhos com uma Coral ou Brisa, às tradições e ao cheiro a peixe e maresia. Esta terra que me viu nascer e da qual sinto um orgulho imenso de pertencer tem a baía mais bonita da ilha da Madeira. No passado, a então vila piscatória era considerada perigosa, a terra das algazarras, dos drogados, dos pobres e dos ignorantes. Quem não se lembra das legendas na televisão sempre que alguém de Câmara de Lobos dava uma entrevista? Graças às várias políticas sociais e de desenvolvimento, Câmara de Lobos foi evoluindo, igualando-se a outros concelhos ditos mais civilizados, superando, aos poucos, as suas carências até chegar ao patamar das pessoas e dos lugares julgados “normais” (lá está o julgamento). Entretanto, passou a urbe, na altura da moda de elevar determinadas vilas à categoria de cidade.
Mudou a categoria administrativa, mas a essência das pessoas é a mesma. Um povo igual a si próprio: barulhento, alegre, descontraído, popular, espontâneo, festeiro, orgulhoso da sua terra, cuja cultura não se diluiu nem deslumbrou pelo desenvolvimento. São estas as gentes de Câmara de Lobos, mais conhecidas por Xavelhas, o mesmo que Chavelhas, designação dada às pequenas embarcações de pesca tradicional utilizadas pelos pescadores da terra, cujo nome deu alcunha aos seus nativos. Quase ninguém diz os câmara-lobenses. Mas, sim, Xavelhas. E é assim que a gente gosta!
Com a recente notícia da propagação da COVID-19 por uma família de Câmara de Lobos, que diz o “covidizer”, ter festejado a Páscoa sem respeitar o distanciamento social, eis que o velho estigma veio ao de cima, e lá estão os ignorantes e os perigosos de Câmara de Lobos a serem julgados na praça pública a propósito da actual cerca sanitária instalada naquela Freguesia, cujo nome é igual ao concelho e à cidade. Inclusivamente um certo jornal da ilha, um JM, sedento de tiragens domingueiras, estampou num título garrafal da sua manchete que “Câmara de Lobos está 15 dias de castigo”, confundindo a árvore com a floresta e atiçando o fogo para exaltar os ânimos. E assim foi também nas redes sociais em que pessoas imaculadas e iluminadas meteram a freguesia de Câmara de Lobos e a sua gente num chinelo. De repente, os Chavelhas voltaram à estaca zero, à sua origem pobre e insciente…
De facto, este tipo de julgamento fácil e impulsivo de tomar todos como farinha do mesmo saco revela as palas invisíveis instaladas nas mentecaptas, o que é triste na actual conjuntura em que deve imperar a união, o respeito, a serenidade e o amor ao próximo. É certo que, a ser verdade tal ajuntamento familiar, principalmente numa altura de declaração de estado de emergência, a punição dessa família e também de outros comportamentos idênticos, deverá ser posta em prática, mas em instâncias próprias e formais. É difícil resistir ao apontar do dedo indicador, principalmente quando todos estamos confinados, quando há famílias a não poder visitar os seus entes doentes, quando há famílias que não podem dar o último adeus aos seus defuntos e quando há profissionais a arriscar a sua vida para salvar a vida de terceiros. Não é justo! Eu também fiquei indignada – e ainda estou um pouco – e até entro na brincadeira de partilhar memes a propósito do assunto. Mas brinco à porta fechada, sem humilhação pública, apenas e tão-só para encontrar humor num contexto difícil que precisa de ânimo para que o pânico, o caos e o medo não se instalem.
Que não nos esqueçamos que todos temos telhados de vidro, de uma maneira ou de outra… E “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, como dizem as escrituras acerca da forma inteligente e humilde como Jesus Cristo salvou a vida a Maria Madalena. Por isso, ninguém tem o direito de achincalhar ninguém, principalmente toda a população de Câmara de Lobos, julgando-a por uma dezena de pessoas que tiveram comportamentos de risco. Os Xavelhas não estão de castigo. Estão apenas a cumprir um dever cívico como cidadãos conscientes, obedientes, cautelosos, para o bem de todos e para evitar a propagação de um vírus invisível e perigoso.
Por fim, arrisco afirmar que o maior vírus é o da ignorância. Esse, sim, é altamente perigoso! Mas, mesmo assim, acho que deviam malhar um pedacinho naqueles estepilhas, para aprenderem a não caçoar com a gente e também para apanharem uma freima. Sem vingança, mas sim com pedagogia e consciencialização.