Da Natureza do Trabalho

Escolhe um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar um dia da tua vida

Confúcio

Seria poético ter sido a frase a lançar esta reflexão mas não. Contudo, o desafio surgiu de um jeito mais interessante: o interesse de um amigo pela recente mudança da minha situação profissional. Na resposta, onde pontuavam os novos aspectos (hoje competências) que muito gozo me estavam a dar desenvolver, saiu-me um “apesar de estar muito mais satisfeito profissionalmente, não é o trabalho dos meus sonhos, mas tem-me libertado tempo para outras coisas que eu gosto de fazer”.

Resposta e questão subsequente: “Depois de ler o teu mail, deixo-te a questão: um trabalho tem de ser obrigatoriamente algo que nos realiza ou pode ser apenas algo que nos permite fazer o que nos realiza? Quando responderes, digo-te o que acho

A esmagadora maioria das pessoas trabalha da forma que o faz, porque tem que o fazer: não para o bem comum ou por gostar do trabalho com que se ocupa, mas para tirar o rendimento que permita fazer o que gosta. O dinheiro não traz o mais importante da vida, mas alarga o espectro de opções com que nos enriquecemos enquanto pessoas, aproveitando nós melhor esta janela de setenta ou oitenta anos que nos foi concedida. O resto é connosco e com a sorte; não com o dinheiro.

Acredito que a parcela da humanidade que se sente profundamente realizada com o que faz (no sentido em que, se lhe fosse dado a escolher fazer outra coisa qualquer, por exemplo viajar ou dançar a vida inteira, continuaria a optar pela actividade presente) é mínima. Mesmo aqueles que, como eu, valorizam muito o tempo extra-trabalho (crendo que, quanto maior for a sua qualidade, maior será o rendimento profissional) precisam do trabalho para valorizar o tempo livre tornando-o “de qualidade” e para ganhar a independência financeira que dê um “empurrãozinho”.

Além do mais, alguns podem ter a sensação de realização plena, mas não estarão a confundir realização com reconhecimento? Se o Cristiano Ronaldo não fosse bajulado por hordas de admiradores em todo o mundo e não tivesse forçado a saída do Real Madrid para a Juventus (30 milhões de euros limpos por ano em vez dos “míseros” 17 que ganhava) esforçar-se-ia da mesma forma ou encararia o futebol como mais um hobbie? Não duvido de que ele goste do que faz e que aquilo nos move seja diferente, mas sem reconhecimento, a resposta à pergunta Gostas do que fazes? seria – acredito – bem diferente.

Sejamos honestos: a esmagadora maioria dos trabalhos é desinteressante para a maior parte das pessoas. Corrijo: a maioria dos trabalhos, repetidos durante um terço das nossas vidas, é desinteressante para a maior parte das pessoas. Mesmo um artista ou um jogador da bola encontra momentos de saturação, stress ou até de necessidade de mudança. Precisaria da contra-prova para atestar em mim a verificação empírica do que se segue, mas esta premissa acontece não apenas com o trabalho mas com todas as ocupações inerentes à actividade humana: se fossemos “empurrados” para ocupar dias, meses, anos seguidos da nossa vida com viagens, escrita, idas ao cinema, tarefas domésticas, idas ao supermercado, ao médico, caminhadas no campo, na montanha ou na cidade, idas à praia ou ao ginásio, prática de desporto, jantares, conversas ou partilha com amigos, a dedicação a uma vida a dois, com amor, respeito, divertimento e bom sexo, enfim… não é fácil, mas imaginemos uma só destas dimensões ocupar quarenta horas da nossa semana durante mais de quarenta anos. Sem contra-prova, acredito que nos fartaríamos. Por isso alguns dos mais ricos vêem na geração de mais dinheiro a fuga a este abismo em que cairiam se furassem a distracção da grande máquina da busca incessante; por isso outros ricos procuram experiências alternativas para entreter e distrair o espírito como viajar de balão ou ir ao espaço; por isso outros ricos ainda se viram para a solidariedade – genuína ou aparente – que lhes permite continuar a perseguir uma causa, mais nobre talvez, mas com uma diversidade maior no que respeita à rotina.

E era aqui que eu queria chegar: Diversidade. Não tendo ganho o Euromilhões nem sendo rico, posso apena ter ideias não testadas sobre o tema, mas julgo que muito poucas pessoas foram feitas para desempenhar a mesma tarefa, seja ela profissional, doméstica, de lazer ou até interpessoal durante demasiado tempo. Por isso a diversidade é essencial: espalha o nosso foco pelos diferentes ingredientes da vida e, ao combater a rotina, protege-nos da saturação: o facto de o tempo que dispensamos ao trabalho ser superior ao que dispomos para o resto condena-o, aos nossos olhos, mas se o mesmo acontecesse com outro oficio, a forma de o encarar cairia neste mesmo enfado.

Eu gosto muito de bife com batatas fritas, mas todos os dias é capaz de fazer mal ao espírito.

Questão: “(…) um trabalho tem de ser obrigatoriamente algo que nos realiza ou pode ser apenas algo que nos permite fazer o que nos realiza?

Resposta (carece de verificação): um part-time que nos permitisse ter mais tempo para explorarmos outras possibilidades da vida sem que a perda de poder de compra hipotecasse o propósito da mudança, seria bem-vindo: manteríamos a ligação com o carácter obrigatório do trabalho e a convivência que ele nos oferece, e abrir-nos-ia portas para a experimentação. Provavelmente traduzir-se-á na quadratura do círculo… ou talvez não.

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