Para o fim do Verão daquele ano vivíamos numa aldeia que, para lá do rio e da planície, confrontava as montanhas. No leito do rio havia seixos e pedregulhos, secos e brancos ao sol, e a água clara corria suavemente pelos canais. Passavam tropas em frente da casa e desciam a estrada, e a poeirada que levantavam cobria as folhas das árvores. Os troncos das árvores estavam também cobertos de pó e as folhas caíram cedo naquele ano e víamos as tropas marchando pela estrada fora e o pó que se levantava e as folhas, levantadas pela brisa, caíam sobre os soldados em marcha e depois a estrada deserta e branca sem nada além das folhas.
Foram estas as palavras com que Ernest Hemingway abriu O Adeus Às Armas, o seu segundo romance, publicado em 1929, capturando o meu imaginário desde o primeiro momento. Parti para esta leitura com a expectativa em cima e aconteceu uma raridade: não só tal não me defraudou, com esta história de amor passada no norte de Itália, entre um tenente americano e uma enfermeira inglesa, durante a I Guerra Mundial, como saiu melhor do que a “encomenda”.
Hemingway foi um dos escritores mais importantes na sedimentação do meu gosto pela leitura. Muitas viagens de comboio e metro nos tempos de faculdade foram passadas a ler e explorar autores tão variados, desde Hesse, Kundera ou Hemingway, passando por Allende (Isabel), Gaarder e Pearl Buck, para chegar a Nicholas Sparks ou Irving Wallace. De resto, num primeiro ano do curso de Matemática – eufemisticamente cunhado como “de adaptação” – em que quase fazia o pleno… de reprovações…quadros negros carregados de uma mescla de hieróglifos, caracteres gregos ou árabes, em cirílico ou mandarim (aos dezoito anos é ainda possível apanhar traumas), salvou-me a descoberta dos livros e autores que não mais viria a deixar. Cheguei a regozijar-me com atrasos e avarias nas composições da CP e do Metro (algo que num período do curso, com o desinvestimento, começou a acontecer com alguma frequência) ou a faltar a aulas para poder estender o tempo de leitura e assim evitar estudar. É mais fácil escondermo-nos do que irmos à luta e nesse primeiro ano escondi-me na leitura. Tenho dúvidas de que não o aconselharia a ninguém, pois não sei como seria eu se tivesse entrado no curso a marrar e nunca descobrisse este mundo naquele ano em que o contraste entre as aulas de que eu nada entendia e as histórias que me levavam para longe daquele inferno, foi precisamente o que fez nascer esta paixão.
O Adeus Às Armas é assim para mim indissociável desse refúgio onde eu procurava lugares que me falassem. Foi com livros como este que o séc. XX se foi convertendo na minha época favorita da História (e da ficção). Hemingway teve uma importância imensa neste percurso e nessa era. Ainda que a adolescência estivesse no fim, poder viajar por estes mundos do passado (ou do futuro), mais ou menos imaginados, mais ou menos profundos, mais ou menos fastidiosos, foi um bálsamo.
Note-se que nesta história, Hemingway está lá com todas as suas idiossincrasias, com o orgulho, o machismo e as consequências que isso traz para a vida de Frederic Henry, o seu reflexo no livro. Mas é também isso que me atrai na sua escrita: ler os defeitos e virtudes que nos tocam a todos, vertidos numa belíssima história de amor, num cenário magnífico. numa época maravilhosa… a da história e a da minha vida.