Segue a noite imparável por entre a chuva que cai. Sentado em frente à janela, ele observa absorto a forma como o frio se estilhaça contra o vidro que o protege da selvajaria do exterior. Está ali num pequeno mundo, naquele espaço que se confundia com o próprio tempo daquela noite. A respiração embate no vidro e desenha letras efémeras que para si são imortais. Um “A”, depois um “M” e interrompe-se ao ver nas letras a imagem dela a rolar na cama, o edredon a cobrir o corpo. Ela apoia-se num braço e ensonada pergunta-lhe:
– Que horas são?
– Não sei. Já é tarde mas ainda falta para voltar a ser dia. – Responde ele.
– O que fazes acordado?
– Apenas não consigo dormir.
– Que tens?
– Receio de acordar.
– E por receio de acordar não dormes?
– Aqui o dormir seria acordar deste sonho que estou a viver.
Olham-se durante um longo minuto fitando em silêncio os sentimentos no fundo dos olhos um do outro. Está escuro e ela apenas consegue ver o brilho no olhar que a amava. Levanta-se, veste o edredon enrolando sobre si e caminha para junto dele. Ele olha a rua e apaga as letras que já tinha desenhado no vidro. Ela pousa uma mão no rosto dele e vira-se até os olhos se encontrarem. Percebe então que o brilho não é mais do que um reflexo da luz da noite nos olhos molhados.
– Não te faças isto. Sabias que tenho que regressar.
– Eu sei. Mas por ora permaneces aqui e ver-te dormir lembrou-me o tão humana que podes ser.
– Fico contente por me veres humana. Sinal que aceitas os meus defeitos.
– O difícil de ver um fim que sabia inevitável é que aprendi a amar também esses teus defeitos.
– Já os conhecias.
– Imaginava que sim, mas foi preciso sentir-te para o saber.
– Lembra-te deles para que me possas esquecer.
– Vou para sempre lembrar-me que tenho de te esquecer.
– Brincas com as palavras.
– Que são sentimentos.
– Eu própria confesso que não sei se conseguirei esquecer este dia, esta noite. Sabes que não é por não te amar que não continuamos vivos.
– Não sei, quero pensar que não sei. Mas sinto-o. Sinto-o na forma como me falas, me olhas, me tocas.
– É verdade. Tive de descer ao mundo terreno para sentir a verdadeira dimensão do amor.
– Sinto-me um escolhido.
– Mas não, foste tu que me escolheste. E sem o teu amar nunca conseguiria fazer acontecer o que ainda está acontecer.
– E é por esse ainda estar a acontecer que eu não consigo dormir.
– Vem cá. Deita-te ao meu lado e ensina-me a não adormecer.
De novo deitaram-se e amaram-se. Ele e ela. Ele que acabaria por adormecer, ela que acabaria por desaparecer. Amaram-se até ser dia e aos primeiros raios de luz ele adormecer. Dormiu profundamente, preenchido e amado. E enquanto dormia sabia que ela se ia levantar, vestir-se, beijá-lo uma última vez e sair. Quando acordou ele soube que sentiu o seu último beijo. Soube que ela partiu para voltar a ser que era. Partiu para aquele lugar onde os deuses pertencem. Partiu para ser uma deusa, a sua deusa, que ele sabia ser humana.