Um regime de democracia apresenta um conjunto de critérios que o distinguem de uma ditadura. Regra geral, um país vive em democracia se os líderes são eleitos por sufrágio universal, em condições de liberdade individual e sem constrangimentos, como também pela rotatividade dos governantes. Não é suposto que alguém se perpetue no poder.
Outra caraterística é a liberdade de pensamento e expressão do mesmo. Por outras palavras, ausência de censura e liberdade de expressão. Ao longo da História assistimos a eventos e instituições que tinham por objetivo silenciar o pensamento divergente. Assim, para combater a Reforma e estimular a pureza católica, criou-se a Inquisição. Através da tortura e execuções públicas em autos da fé, como os realizados no Rossio, em Lisboa, expressões diferentes de religiosidade eram punidas, onde o supliciado era queimado vivo.
A censura às liberdades passava, também, pelo crivo do que era aceitável ou não. Para isso, a censura prévia assegurava que as pessoas não se “contaminassem” com escritos “subversivos” ou ideias “perigosas”.
Hoje assistimos a um fenómeno semelhante, mas de orientação diferente. No passado a censura impunha-se desde cima. Eram os governantes ou líderes religiosos que impunham as restrições às liberdades. Atualmente é de direção horizontal ou vertical ascendente e é mais conhecida como cultura do cancelamento. É horizontal porque é exercida entre pares e vertical porque é um movimento que pode iniciar nas bases da sociedade e só parar nas elites.
Podemos considerar que é um movimento recente, especialmente através do movimento #metoo, e existe uma certa analogia com o ato de bloquear alguém nas redes sociais. Funciona cancelando uma pessoa pelas suas atitudes, comportamentos ou falas (presentes ou passadas) e o objetivo é fazer justiça popular.
Há quem argumente que é uma forma de responsabilizar alguém por algo que cometeu. Mas, se assim é, para que servem os tribunais? Recordo-me de uma série (House of Cards) ter sido cancelada porque o seu ator principal, Kevin Spacey, foi acusado de abusos sexuais; a sua carreira nos palcos desvaneceu-se. A justiça popular foi rápida a exercer o seu julgamento sumário e este ator deixou de representar. No fim das contas, o tribunal decidiu absolvê-lo porque não existiam provas das alegações dos seus acusadores. Entretanto, a sua imagem estava denegrida o suficiente para não ser reabilitado. Quem pode ser responsabilizado por estes danos?
Em nome de uma certa cultura onde tudo é perfeito e o politicamente correto impera, não é admissível o contraditório. Aliás, vou mais longe: não é admissível a existência do que e quem não se alinha com a minha cosmovisão. Tudo o que vá contra em que acredito tem de ser colocado num auto da fé virtual e “queimado” o suficiente para ter a sua merecida punição.
As consequências desta sociedade-em-que-tudo-é-perfeito são muito interessantes. Em primeiro lugar, tende a não existir diversidade de opiniões, com receio de que se possa ir contra o politicamente correto. Para alguns adolescentes o medo do cancelamento é grande o suficiente para, nalguns casos, desenvolverem depressão, ansiedade ou pensamentos suicidas. É o medo de se expressar e ser condenado pela maioria que tende a suprimir as suas opiniões e visões do mundo. Este é o mesmo medo que os nossos antepassados tiveram de polícias políticas ou da Inquisição…
Outra consequência da sociedade-em-que-tudo-é-perfeito é a polarização social. Em parte, este fenómeno deve-se ao próprio funcionamento das redes sociais, através dos algoritmos que escolhem o que vemos tendo como base os nossos interesses. Ou seja, as redes sociais digitais promovem que vivamos em bolhas temáticas onde somos constantemente “alimentados”. Deste modo, cria-se uma cultura assente no tribalismo onde quem não faz parte do meu grupo é um inimigo e, por isso, tem de ser cancelado.
Crescemos moldados por valores e princípios que nos ajudam a viver em sociedade, mas quando obrigo outros a viverem conforme a minha cosmovisão, o que me distingue de um qualquer ditador? Vivemos numa Era onde o acesso à informação nunca foi tão grande, a liberdade de expressão e afirmação constituem-se direitos fundamentais de uma democracia madura, mas através do politicamente correto restringimo-nos a nós próprios. Desta vez, não são instituições que nos obrigam a ter a mesma forma de olhar o mundo, mas nós mesmos.
A cultura do cancelamento promove julgamentos precipitados e algumas vezes sem fundamento, acabando com carreiras de pessoas ou obrigando ao exílio social. As suas consequências ultrapassam quem é cancelado, chegando mesmo a provocar depressão e ansiedade só do medo que se tem de ir contra a opinião geral.