Parte I – Pelos Ares da Rotina

Arrastamos uma vida ao entrar num aeroporto, primeiro, e num avião, depois, para nos arrancarmos à rotina e levitarmos num intervalo de tudo quando as casas pela janela vão encolhendo para aldeias de bonecas, a costa recortada nos mostra o mapa que desconhecíamos tão verdadeiro e a imensidão do mar, mar e mais mar nos atira à cara, como salpicos subindo pelos quilómetros de altitude a que voamos, pelo vento frio que acreditamos fazer lá fora, onde o sol reflecte nas nuvens abaixo um brilho de novidade, que a vida é, também é, ou pode ser toda uma outra coisa além da engrenagem infinita de acordar, trabalhar e amar.
O pasmo começa no aeroporto, reticulado multilingue, multiétnico, numa desordem colorida onde todos nós, pontos-universo nos estudamos tentando adivinhar as vidas por trás dos mais altos, mais escuros ou mais excêntricos, salpicos de Pollock refazendo lentamente a ordem na nossa cabeça de observadores, pincelada colorida junto à porta de embarque enquanto os carrinhos de bebés e as cadeiras de rodas nos ultrapassam na prioridade que enjeitamos, e não é mais (ou não é só) a vida que trazemos connosco para a viagem mas toda uma brecha cósmica que se abre para nós numa realidade alternativa quando todos os outros continuam lá atrás, e ao mesmo tempo em simultâneo – passe a redundância – com as suas vidas, das quais ainda ontem fazíamos parte sem questionar, e as viagens dos outros não eram mais do que rotinas para nós, pois quando nós viajamos é todo o mundo que formamos continuamente a cada instante que se translada, distorce, se expande, enquanto cada viagem de qualquer outro que connosco percorre o carril do pouca-terra infinito não é só uma, mas muitas, de cada vez que um deles viaja, e assim se faz indiferenciada, uma peça mais no quotidiano.

E o avião são os espaços espremidos de tão apertados, os ouvidos a entupir e o sono a resvalar para aquele limbo do quase adormecer até a cabeça cair para a frente, de boca aberta e talvez um fio de baba mais rebelde, para voltarmos a pegar no livro e dar novo avanço, puxando o sono porque a noite foi dura, tal o medo de não acordar antes das quatro e perder o voo, os voos no caso, uma escala de quatro horas em Londres que me soube a trabalho e lazer, ajudar no possível com um par de chamadas para Portugal e voltar ao livro de Seeling, Caminhadas com Robert Walser, autor que alimentou um capítulo de uma das conversas mais interessantes, inusitadas e improváveis com um desconhecido no aeroporto de Barajas, vai para uns seis ou sete anos. Vi o livro na Livraria da Travessa e a Sofia fixou-o (na verdade, eu reparei que ela o tinha anotado, mas fiz que não era nada comigo, sem contudo deixar de reiterar o interesse na pérola que destapa um pouco, o possível, sobre o enigmático escritor suíço). Ofereceu-mo para esta viagem e o prazer tem correspondido à expectativa. Estes outsiders que acabam em sanatórios têm algo de trágico e de grandioso, e se bem que ainda não tenha conseguido resolver o paradoxo de como produzir grandes obras sem sentir este apelo do abismo, vou tentando aproveitar da vida as coisas boas que ela vai largando (são tantas!), sem, contudo, querer quebrar este elo que me chama às profundezas da melancolia, e por vezes mais fundo ainda.
Sem um abismo, cada artista é apenas metade de si, uma flor de estufa sem cheiro.
Robert Walser

E eis-me no voo grande, sobre o Atlântico, padecendo do paradoxo da escolha: tenho o livro, a escrita, os podcasts, filmes (no telemóvel e no avião) e não sei por onde escolher. Antes da internet a vida era mais fácil! Vou lendo as entradas do diário de Seeling. Já despachei um debate, mas os filmes ficarão para mais tarde: os do avião não têm legendas e no telemóvel esgoto a bateria. No entretanto, dormito, mas oito horas é um oceano e acabo por me ver sem nada que fazer, o que é óptimo! Chamo de novo a observação e noto que o tipo dois lugares à minha frente, na fila da direita (viajo na do meio) trabalha. Não sou tão profissional… com uma oportunidade destas para escapar à rotina e ter não só tempo de sobra para ler como também para olhar para o lado e até para não fazer nada! É um luxo cansativo, mas um luxo ainda assim. Não fazer nada… saborosa circunstância onde nem o tédio ou o vazio têm lugar quando nos apetece observar, como a mulher que ao meu lado viaja com os dois filhos até às Bermudas, destino desgarrado de todos os destinos que eu algum vez pudesse antecipar, até me ver aqui, sobrevoando o oceano a descrever esta realidade, com um, dois ou até mais companheiros de viagem a tentar decifrar o que vou registando no o monitor que ilumina a cabine escura.
É outro mundo este para onde viajamos quando viajamos, o destino dentro do destino, múltiplos destinos deambulando em nós, convergindo para esse outro lugar, ilha perdida no meio do Atlântico, vértice do triângulo desvendado. E é lá que a realidade continuará a ser escrita, talvez não em texto, este ou outro, mas numa colecção de impressões únicas, como esta viagem é única, por furar todos os engarrafamentos do subúrbio e voar livremente, com tempo para ler, para não fazer nada ou ver um filme (ainda comecei a ver Os Últimos Dias, que pretendo terminar no hotel), e para pensar e sentir que a vida também se faz disto. Os próximos dias não serão tão amigos do meu tempo, mas existirá sempre a sexta-feira, outra viagem de sol a sol, desta vez via Nova York, mandando-me novamente para fora de pé.

Um dos problemas destes escritos desconexos, traçados no impulso do momento, além da desordem e do afastamento que uma impressão tão pessoal possa levar a quem lê, é conseguir fechá-los com sentido sem saberem a pouco nem a absurdo, sem parecerem forçados nem lamechas. Ainda tenho duas horas de voo para fechar os olhos ou voltar a Walser. Terminemos com ele então, e com um estado que ainda não alcancei:
Quando se é jovem, anseia-se por momentos festivos. Encara-se o dia-a-dia quase como um inimigo. Quando se é mais velho, porém, confia-se mais nos dias normais do que nos dias festivos. O habitual torna-se mais estimado, ao passo que o excepcional se volve em fonte de desconfiança.
Se Walser estiver certo, sou novo e não sabia.
Sobre o Atlântico, 20 de Março de 2022
Pelos Ares II: Retalhos de Uma Semana Desencaixada
O Shake Shack pereceu-me a espelunca mais barata do terminal 8 do aeroporto JFK, depois de uma breve prospecção por um corredor interminável para encontrar um sítio de jeito onde comer qualquer coisa e descansar um pouco. Um hambúrguer e uma garrafa de água formaram a combinação mais barata que encontrei, para perceber que a água era gaseificada e a empregada que trazia os sacos com os pedidos apurava de quando em vez o olfacto pela sovaqueira. São três e meia; tenho mais de quatro horas pela frente, se bem que Um Certo Lucas me tenha feito companhia no voo das Bermudas até aqui e, juntamente com a chamada combinada com o João e outra para a Sofia, a que somo estes post its da viagem, julgo ter entretenimento até ao embarque. Caso contrário, resta-me observar o mundo a correr nesta passadeira rolante para me sentir do lado contrário ao de todos os dias.

Por aqui o adaptador de corrente é igual ao das Bermudas, isto é, nem europeu nem britânico, o que significa que tenho que me despachar a escrever as imagens que conseguiram escapar do tumulto de sensações que no meu cérebro foram chocando, electrões epiléticos que agora tento ordenar. Talvez no avião consiga desenrascar algum USB, entre os infinitos cabos que trouxe e não utilizei.
Esqueci, inadvertidamente (embora estas coisas nunca sejam totalmente por acaso), de esborratar nas notas que escrevi à vinda, o coalhado a mijo putrefacto que da dama sentada no lugar à minha frente emanava de cada vez que levantava os glúteos da cadeira (e tanto que ela se levantou! por vezes só a peida, deixando inerte o restante corpanzil, parecendo fazer de propósito para libertar mais umas gotículas, como os doseadores automáticos que ambientam as casas de banho dos espaços públicos, só que no caso era ao contrário: era a filha que queria isto, o rapaz que lhe apetecia ir à casa de banho, a irmã (no corredor central eram quatro cadeiras) que se esqueceu de tirar uma merda qualquer da mala que nos confins das alturas não iria servir para nada mas que ela tinha que ter porque sim, e por causa desse “sim”, lá vinha mais uma baforada que os inferiores lábios saturados se viam incapazes de conter).
As Bermudas, do tamanho de São Miguel, conseguem colocar toda a população no Estádio da Luz. A inteligência do ATM do aeroporto local surpreendeu-me quando me aproximei e vi no visor bilingue o Português (além do Inglês) bem escrito. A estupidez instantânea ainda me riscou a testa e julgo ter-me aproximado do Ainda nem inseri o cartão e a máquina já sabe de onde eu venho! Tem o faro tão apurado quanto o meu se desenvolveu para o mijo nas alturas! mas viria a perceber depois que a imigração açoriana bateu forte na ilha – agricultura e construção – e a comunidade portuguesa é a segunda maior por aqueles lados, só que sendo a maioria de segunda ou terceira geração, já poucos falam português e os que o fazem, cantam-no com uma pronúncia musicada, com as dobras do inglês da América e as vogais abertas do português das ilhas.
Os taxistas, boa parte deles oriundos dos Açores – Saint Michael, right? Açores ser três ilhas? – vivem neste pêndulo infinito, percorrendo as ruas estreitas, aparentemente sem acusar a claustrofobia de um vaivém que não os tira da cepa torta, ainda que falem na rota aérea recentemente aberta para os Açores, no Verão, boa para abrir os sonhos, ainda que para a maioria deva ficar mesmo por aí pois um visitou a terra dos pais pela última vez em 1992 e o outro nunca sentou os colhões na ilha onde o avô nasceu. Como quase todo o mundo, é uma terra de contrastes.

As casas têm o telhado pintado de branco, que é importante manter limpo para aproveitamento das águas pluviais. A ilha está aliás polvilhada de casas por todo o lado, e contam-se pelos dedos das mãos o número de prédios que vi. Uma única central – a gasóleo! – ilumina toda a ilha e os campos de golf ajudam a rarear ainda mais a água doce que os telhados se esforçam por reter e a queima do lixo produz, a partir da água do mar (a dessalinização, segundo um taxista de terceira geração, não foi pensada, mas criada como uma segunda derivada das opções políticas locais, quando o espaço para enterrar os dejectos e detritos dos bermudianos começou a esgotar-se).
Este foi o mesmo taxista que nos levou à Caverna de Cristal e à Caverna da Fantasia: fomos três, a Vera, a Andrea e eu, para vermos o mar paradisíaco da costa norte e toda a conversa sobre a vida insolar (velocidade máxima de 35 kms/h que poucos cumprem). São bonitas, talvez mais bonitas que as Grutas de Mira Daire e de Santo António, mas muito mais pequenas e seguramente mais caras! Este fim do mundo é (compreensivelmente) um dos países mais caros do mundo. É bonito e tal, mas não o paraíso que muitos postais de praias esborracham contra as vitrines das agências e de forma alguma um lugar para estoirar o subsídio de (muitas) férias, sobretudo para quem tem praia perto.
O evento (afinal, foi em trabalho que viajei) foi de uma leveza que me surpreendeu, a mim que julgava entrar mudo e sair calado desta excursão de executivos, mas que me vi a conversar uma tarde inteira com o Kieran, um americano de Pittsburgh, com a Nancy, de Toronto, o Rondy de Huston (e tantos mais de Huston, Dallas, Austin ou San António, afinal o Texas ainda é a capital do ouro negro), A Vera e a Andrea de Budapeste, o Luigi de Roma, o Tommaso de Bogotá, o Lars e a Marit da Noruega (não me recordo se era de Oslo; apenas que um dos filhos estudou em Tromso, depois de eu lhe ter dito que um amigo da primária lá vivia) e alguns outros, com quem troquei palavras de circunstância (as habituais conversas sobre o tempo em cada país, curiosidades do idioma, nível de vida ou principais atracções) ou algo mais. Entrei com pezinhos de lã para constatar que não é difícil caminhar sobre as nuvens, desde que saibamos onde, como, e até onde colocar os pés. Não foi assim pelas Bermudas que gostei das Bermudas, mas daqueles que trago a mais no Linkedin.

As bermudas aliás, são uma combinação ridícula: gente crescida de calções e casaco só me lembrou o complexo de Peter Pan, pessoal que devia ter juízo, mas que teima em armar em escuteiro, com o calçanito e a peúga puxada até cima, só que no caso, são não só adultos como se pavoneiam com um ar de lord-snob (ao contrário dos escutas) que eleva todo o nível de risibilidade.

Regresso. No aeroporto das Bermudas, a assistente de terra da Delta Airlines, ao perceber que eu era português, tentou (simpaticamente) aproximar-se pelo idioma. Novamente os “aaaaa”, largos como o oceano, e os “r” com a língua dobrada, como quem tenta falar com a boca cheia de água, dificultaram mais do que ajudaram, mas ainda reparei nas unhas de Gail Devers que em lado nenhum do mundo facilitam o que quer que seja além da estética de nível muito duvidoso (gostos não se discutem, mas podem muito bem ser manifestados). Aquele tamborilar assustador lembrando um cruzamento entre uma Água Real prestes a fincar a presa e o Eduardo Mãos de Tesoura a cortar uma sebe com o aquele ar de fantoche aparvalhado… mas chega maledicência.
E eis-me no mesmo lugar do JFK, uma hora passada e 18% de bateria por consumir. Organizei a entropia de electrões numa corrente ordenada. Talvez volte a escrever lá em cima, sobre as nuvens onde aprendi a caminhar por estes dias, pela noite, se o sono teimar em ser o que quase sempre tem sido: um amigo colorido.
Aeroporto JFK, Nova York, 24 de Março de 2022
PS: À chegada a Lisboa, sábado, ainda não eram sete da manhã, seguia absorto para o táxi quando vejo com surpresa a Sofia à minha espera! Toda esta parafernália de aeroportos, fugas à rotina, uma mulher mijada e alterações de idioma a cada interlocutor tem o seu quê de Matrix Felliniano, mas chegar a casa e sermos surpreendidos desta forma traz à superfície a âncora que nos liga à vida. É bom viajar, mas regressar também.