Esta história começa pelo fim, porque foi precisamente esse mesmo fim que precipitou tudo o resto. Não sei bem precisar quantos ao certo, mas foram penosos e longos os minutos que nos mantiveram colados à caixa que sempre se disse mágica. Tristeza, horror e uma inexplicável certeza de que o pior estava a acontecer, ali, em directo, na Televisão. Estávamos os 3, como era costume. A Mãe, o mano e eu. Para quê? Para ver o Senna, pois claro.
Porém, desta vez, ele morreu, ali, em Ímola, numa pista que conhecia de sobeja. Não era o seu Mónaco, é verdade, mas sabia-a de cor. Já lá tinha vencido por 3 vezes e subira ao pódio noutras duas ocasiões, sendo que levava já 5 poles naquela pista nefasta. Aquele ano não estava a correr particularmente bem. Num carro que não conhecia, mas que admirava (Williams), que não reagia como ele queria, que tinha sido privado de vários equipamentos electrónicos, que mudaram por completo o comportamento do mesmo em pista. Senna tinha conquistado a pole position nos 2 primeiros GP’s do ano, mas não tinha terminado nenhuma das corridas (Brasil e Pacífico). Num fim-de-semana que teve mais uma morte (Ratzenberger) e um acidente grave (Barrichello), Senna voltou a ser o melhor nos treinos de sexta-feira, porque no sábado, após a morte do piloto austríaco, Senna não quis treinar mais. Naquela altura víamos tudo. A primeira e a segunda sessão de treinos e depois, claro, a corrida.
Voltando ao Domingo, àquele 1 de Maio de 1994. Almoçámos na sala, como era costume. Tabuleirinho com uma sandes e um copo de batido para cada um. A tradição da F1 era antiga. O meu tio costumava fazer as narrações na televisão e, como tal, começámos a ver assim, porque o tio estava a falar na “caixinha mágica” e nós podíamos ouvi-lo ao Domingo. Era uma alegria. Foi também dele que partiu a paixão e a admiração pelo Ayrton e a consequente e mais do que natural, chamemos-lhe, antipatia, para ser cordato, por Alain Prost, o eterno rival. O tio já não narrava as corridas, mas nós continuávamos a ver o nosso herói. Eram sempre dois Sennas nas corridas de carrinhos que fazíamos no chão do quarto, ou na rua. Até a correr, fingíamos que éramos carros de F1 e imitávamos os barulhos com a boca e, claro, éramos o Senna, ou o Mansel vá, que era um tipo simpático. Eu, mais velho, lá convencia o meu irmão a ser o Berger, que era amigo do Senna. De vez em quando, deixava-o ser o Senna, durante um bocadinho, só para ele ficar contente.
Contudo, naquele Domingo, sentia-se na cara dele, antes de começar a corrida, que alguma coisa não estava bem. Tu conheces o teu herói. Lês-lhe os olhos e a expressão e ele estava preocupado com qualquer coisa. Talvez sentisse que algo não estava bem. Nunca tinha visto morrer ninguém. Com 10 anos, também não é suposto ver-se morrer gente, mas aconteceu naquele 1º de Maio e em directo na televisão que, pobre coitada, se foi esforçando para lidar com a situação. Lembro-me de ter percebido imediatamente que era grave, muito grave. Grave naquela forma fatal, terminal e incontornável, que a gravidade tem por característica maior. Grave daquele jeito que tira as pessoas da vida e tira a vida às pessoas.
2 ou 3 minutos, que pareceram uma eternidade… E a televisão a mostrar… E ele que não sai do carro. “Porque é que ele não sai do carro? Mãe, porque é que ele não se mexe? Hã? Porque é que não o ajudam? O que é que se passa? Façam qualquer coisa.” De repente, já lá está gente, muita gente, tanta gente que só lhe vemos as perninhas. De repente, toda a gente sente. De repente, o corpo cede. De repente, ele foi embora. O capacete verde e amarelo tombou vagarosamente, num gesto de adeus consentido pela sua alma. Nunca tinha visto morrer ninguém na televisão, nem na televisão nem em parte alguma. Só nos filmes e nos filmes eles não morriam de verdade. Nos filmes, era sempre tudo a fingir. Isso eu já sabia, à data. Já me tinha apercebido.
Preparava-me para fazer 11 anos nesse Verão. Este pormenor tem alguma relevância no sentido em que com 10 anos já tens amores, paixões, ídolos. Mesmo que não percebas os amores que sentes, as paixões que desenvolves, sabes por que razão tens um ídolo, porque ele é o maior, o melhor. Assim como sabes bem qual a razão de seres de determinado clube, porque ele é o melhor, pelo menos para ti, e valha-nos esta liberdade de procurar inspiração. Senna era assim. Apaixonante. Idolatrável. Total e completamente idolatrável. De sorriso terno e maroto. Aquele punho erguido e cerrado, que trouxe tanta alegria à minha vida, à minha casa. À minha e a tantos outros milhões de casas espalhadas por esse mundo inteiro. Tinha pósteres. Carrinhos da Burago. As miniaturas. Os desenhos do capacete pendurados na parede. O capacete verde e amarelo que espreitava sempre, ou quase sempre na frente de cada curva. Depois, a chuva. A capacidade inacreditável que o homem tinha de deslizar pelas pistas alagadas, mais rápido, travando mais tarde, roçando sempre os limites que nenhum outro tinha a audácia de ousar tocar. Ayrton Senna da Silva era tudo isto e morreu dentro do “objecto” que o fez maior.
Naquele momento, em que ainda o têm deitado no chão da curva Tamburello, em Ímola, naquele momento em que o corpo dele finalmente relaxa, sem um único osso partido, sem um arranhão, atingido “apenas” na cabeça, pelo azar, por um braço da suspensão do carro, que lhe perfurou o capacete e lhe pôs fim aos sonhos, aos objectivos, à vida. Naquele preciso momento, apercebi-me de que nada voltaria a ser como era até então. Nesse ano, acabou o amor pela F1. Nesse ano, acabaram-se os almoços de sofá aos Domingos. Nessa tarde, chorámos eu, a mãe e o mano. Depois passou, como passa sempre. Agora, 20 anos depois, continuo a não ver F1, continuo a não almoçar no sofá ao Domingo, mas continuo a não me esquecer daquele capacete. Continuo a olhar todos os dias para a miniatura do carro que o levou. Continuo a trazê-lo por perto deste jeito tão humano, que felizmente ainda vamos tendo. Neste jeito de recordar. Neste jeito de lembrar, de não esquecer e um dia, porque o Youtube assim me permite, vou mostrar ao meu filho, ou à minha filha aquela volta mágica em Donington Park, o punho erguido, a força, ou a falta dela, como quando mal se aguentou em pé para erguer o troféu da vitória em Interlagos, em 1991. São recordações com mais de 20 anos, mas que nunca se apagaram da cabeça daquele menino que, com 10 anos, viu morrer o seu herói. É disto que são feitos os grandes homens da nossa história. Da capacidade inata que têm de permanecer para sempre na nossa memória. Na nossa própria história. 20 anos depois, obrigado Ayrton Senna, por tudo o que foste para tanta gente.