O fumo branco do cigarro

O fumo branco do cigarro. Observa o seu reflexo na porta de vidro enquanto deita o fumo do cigarro contra o vidro, contra ela própria. O reflexo do fumo era quase irreal, transforma a sua cara levemente maquilhada numa aparição difusa. Parece que ela não está ali, é só um pensamento solidificado, um pedaço de memória. Talvez se sentisse exactamente assim, um pedaço de alguma coisa. Lá fora não há nada, ou não interessa. A piscina limpa, a relva verde, o sol fraquinho. Ela, tão cheia de tudo mas de repente tão só. O marido com uma amante qualquer num sítio qualquer, a fugir de qualquer coisa que ela apenas conseguia imaginar. Um copo de whiskey na mão esquerda dela. As mãos estão seguras e confiantes, ela não está nervosa. Só pensativa. Só indecisa. Só terrivelmente triste.

O amante dela desce as escadas, espreguiçando-se. Ela percebe-o no reflexo do vidro. Nota o olhar dele quando a vê de copo na mão às nove da manhã. Um olhar reprovador ou admirado. Não lhe interessa, ele não lhe é nada, como se atreve a julgá-la? Como se o provocasse, bebe mais um gole. Ele ignora, como se tivesse percebido que só ela é dona dela própria. Abraça-a por trás e beija-lhe o pescoço. Ela não reage, decidiu ontem à noite que se fartou dele.

Ele continua e ela entende o que ele quer – tão contrário ao querer dela. Afasta-o sem palavras. Abre a porta de vidro e sai para o jardim. A ostentação toda invade-a mas não significa nada. Apaga o cigarro no whiskey caro e larga o copo na relva, mas ele não se parte. Ela tem pena; queria que fosse mais dramático, que partisse, que se estilhaçasse na terra e cortasse quem se atrevesse a aproximar. Mas nem se digna a olhar para trás. Entra na piscina gelada. O Verão não quis aparecer aquela semana e a água está fria. Ignora as cãimbras, a pele de galinha, a dor. Entra até a água lhe tapar a cabeça. Não quer saber se o cabelo foi esticado no cabeleireiro no dia anterior – deixa-o molhar, flutuar, ser livre. Abre os olhos debaixo de água mas volta a fechar. Acalma-se. Deixa de pensar. O silêncio da água. Deixa-se ficar até os pulmões lhe picarem.

Quando volta à superfície, respira como se fosse a primeira vez. Volta a mergulhar. Volta à tona, os olhos primeiro como um jacaré à espreita, à caça. Limpa-os e ouve o silêncio. Um silêncio diferente, com cheiro a sol e cloro, com ruídos longe. Já não vê o amante. Talvez se tenha ido embora, finalmente. Sai da piscina. Olha para o copo abandonado e o líquido âmbar na relva. O cigarro molhado com uma marca de batom na ponta. Entra em casa. Não sabe se ir ao quarto fazer as malas e simplesmente ir embora de vez. Isso iria trazer-lhe mais liberdade ou mais dor? Senta-se molhada no sofá de pele. Molha o tapete persa. Olha à sua volta. Brinca com a ideia, por momentos, de organizar uma tarde de chá com todas as amigas que odeia. Encosta-se no sofá e fecha os olhos. Está prestes a decidir quem quer ser a partir daquele minuto.

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