O velhote dos pombos

Sentado no banco do jardim estava o velhote. Todos os dias ali permanecia horas, inúmeras, perdido nos seus pensamentos e memórias. De aspecto estranho, muito cinzento e sépia, trajava umas calças quase tão velhas quanto ele e um casaco que tinha, certamente, sobrevivido a muitas intempéries. O banco era seu confidente e parecia encovado para o apoiar.

Umas vezes tinha um jornal, quase sem letras, que ele consultava com ar de entendido. Dobrava-o e voltava a dobrar como se as notícias falassem com ele. Depois pousava-o, ao seu lado e fitava o olhar num ponto distante que o deixava ficar imóvel, tempos sem fim. O cabelo, comprido e emaranhado, fundia-se com as folhas e pequenos ramos, que se acomodavam sem pedir licença. Nos pés uns ténis sem cor e sem forma acompanhados de palmilhas especiais: prospectos de supermercados.

Outras vezes levava pão num saco vermelho, bordado à mão, com a palavra Lanche. Esfarelava, vezes sem conta, até ficar em pedaços mínimos e atirava para o chão. Rapidamente os pombos apareciam, vindos de todos os lados, respondendo à sua chamada. O barulho era intenso. Pousavam na sua cabeça, nos ombros e nas pernas. Ele parecia não se incomodar. Tinham uma forma de comunicação singular.

Continuavam a chegar, aos magotes, como se tivessem saído de um transporte público. Davam bicadas uns aos outros, na ânsia de ficar com a melhor parte. Ele, sempre com a mesma expressão e mantendo a calma, continuava a atirar as migalhas que tinham ficado no saco. Por fim sacudia-o e, nessa altura, começava a debandada. Alguns ainda ficavam, fazendo-lhe companhia, pousados nas costas do banco. Os seus sons eram melodiosos e tudo voltava à pacatez do costume.

O banco era a sua casa principal, por lá passava a maior parte do seu tempo. Ninguém sabia onde vivia, mas, ao escurecer, desaparecia daquele local e voltava no dia seguinte. Onde ficaria? Como seria a sua vida? Como seria a sua casa? No dia seguinte, a uma hora qualquer voltava a estar sentado, com a mesma farpela, olhando, invariavelmente, para um lugar que só ele sabia.

As crianças brincavam à sua volta, faziam barulho, atiravam-lhe com as bolas, mas ele ficava imperturbável. Os cães aproximavam-se e ele fazia-lhes festas. Havia um entendimento, uma comunicação que se percebia. Estava no seu mundo pequeno e fechado que lhe servia de casulo. Gozava o sol que havia e olhava, sem ver, o que o rodeava.

Nos dias de chuva continuava no banco, com um chapéu muito velho que, tão ingenuamente, o protegia daqueles pingos grossos e fortes. O seu ritual era o mesmo. Mirava, via o jornal, de uma data qualquer, e os pombos vinham ter consigo. Sentavam-se ao seu lado, contavam, certamente, pequenas histórias e partilhavam memórias de outros tempos, mais compostos.

Uma manhã o banco estava desocupado. O jornal continuava no mesmo local, à espera de ser lido. Os pombos empoleirados nas tábuas esperavam o parceiro das conversas e dos lanches. Não chegou nesse dia nem nos restantes. O jornal tinha amarelecido e ficado quase desfeito. Os pombos voam e voltavam, esperando por quem não vinha.

As crianças brincavam, jogavam à bola e chamavam os pombos. Levavam-lhes pão e riam muito quando eles vinham bicar nas suas mãos. Faziam cócegas e eram brincalhões. O banco continuava vazio. Do jornal já quase não restava nada a não ser a memória. Um pombo, caído, adormecido para sempre, mantinha a sua sentinela, na secreta esperança do regresso do amigo.

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