Pequenos fragmentos

Hoje ocorreu-me pensar sobre a gentileza. Sobre a importância que ela se presenteia neste caminho que é nosso.

Ocorreu-me também pensar na dificuldade com que cada vez mais me deparo em pensar-me numa sociedade completa, imaculada, brilhantemente activa.

Existe esta enorme tendência de nos mostrarmos aos outros como maravilhosos, sábios, cheios de vida, adequados e com vidas perfeitas. A esperança (por vezes inconsciente) é que nos amem, nos aceitem, nos respeitem. Algures, numa infância lá longe, houve aquele momento em que percebemos que varrer para debaixo do tapete as birras e as trapalhadas seria muito mais aceitável do que mostrá-las por completo.

Somos muito mais bonitos, mais amados, mais acolhidos se nos portarmos bem, seja lá o que isso for.

Não faz mal, está tudo certo. Não há a necessidade inabalável de nos rebentarmos e aos outros com comportamentos hooligan. Este processo é assim mesmo. Há que perceber quais os limites de tudo.

No entanto, algo se perde. Caminhamos numa prisão interior, com bagagens cada vez mais pesadas à medida que o tempo passa. Continuamos a sorrir em personagens inventadas na esperança de que os outros nos aceitem. Perdemos-nos. Fragmentamos-nos.

E é tão mais difícil ser inteiro. Tão mais complicado mostrarmos-nos ao outro e admitir: “Ei, este ou esta sou eu, espero de verdade que gostes de mim. Se não gostares, deixas-me triste mas até entendo, mas sou eu, não há nada a fazer, aqui estou para aprender.” Não é tão mais livre pensar, sentir assim? Não existe uma certa delicadeza, uma gentileza muito maior?

É leve. A gentileza é, de facto, leve. É tranquila e generosa para com os outros mas é indispensável para nós mesmos.

Ao longo da minha vida tenho a certeza que o maior dos meus sorrisos ou actos nem sempre me trouxeram aprovação ou foram compreendidos. Na generosidade achei que os outros iriam amar-me mais, aceitar-me incondicionalmente. Fui aprendendo, aos poucos, que a gentileza em extrema demasia às vezes é sinal de egoísmo. Não vem inabalável de dentro, tem na sua essência sintomas prévios de aceitação por parte de quem a recebe.

Da mesma forma e também devagar, fui aprendendo sobre a gentileza. De conhecer-me, engendrar-me, reparar-me. De entender que por vezes o cuidador fica mais doente do que aquele de quem cuida desmesuradamente e sem limites.

Mesmo nessas estradas sinuosas que se vão percorrendo, a generosidade é arte da vida, mas a gentileza é base. É pavimento.

Com ela podemos mostrar-nos, assumirmos quem de facto somos. Perante os outros e acima de tudo perante nós.

Hoje vim falar-vos sobre gentileza. Sobre a nossa verdade, sobre as nossas inseguranças e sobre as nossas virtudes que são apenas nossas. A coragem de sermos nós e completos.

E lembrar-me a mim mesma nestas palavras que vos partilho: nada existe de mais simples e complexo que simplesmente se ser tal e qual como somos. Perante nós. Expostos aos outros. Completos. Em perfeitos fragmentos.

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