Os Muros que teimam em resistir

“Eles nasceram no lado errado da Muralha, isso não os torna monstros.”

– Jon Snow (GoT)

Os registos históricos mostram que no século XXI antes de Cristo já existiam muros. Aproximadamente desde que as primeiras cidades começaram a surgir nos mapas. Pelo menos aqueles que resistiram ao passar do tempo. Dos mais conhecidos exemplares, temos a Grande Muralha da China, as Longas Muralhas de Atenas, a Muralha de Adriano ou a Grande Muralha de Gorgan, no que é hoje o Irão, mostram do que a vontade humana pode fazer. Não sei se os seus construtores pensaram alguma vez que a sua obra duraria séculos, mas o intuito continua a ser mesmo que na antiguidade: dividir.

É curioso notar que a Grande Muralha da China foi construída para afastar a ameaça mongol, porém este grupo étnico acabou por formar a dinastia Yuan que governou por quase 100 anos. Precisamente a dinastia imperial seguinte à que mandou erigir a Grande Muralha.

Na Grécia Antiga o mundo era dividido pelos helénicos em dois povos: gregos e bárbaros[1]. Afinal, a diferença devia-se ao facto de os outros povos não partilharem dos mesmos costumes ou língua que os gregos e, por isso, eram considerados inferiores. Civilizados e não civilizados, como os europeus tanto gostaram de demonstrar aquando da justificação para colonizar África. É o que poderíamos apelidar de muros étnicos, como aqueles que Israel tem construído para separar judeus de árabes (especialmente nos territórios ocupados).

Na Idade Média, os muros, especialmente nos castelos, já não tinham o objetivo principal de separar dois povos diferentes, até porque as alianças feudais por vezes mostraram ser maleáveis, como se viu pelas alianças circunstanciais entre cristãos e muçulmanos no período da Reconquista. O objetivo destes muros era assegurar que o inimigo, o Outro, estivesse do lado de fora e não pudesse entrar em momento algum. Era o símbolo do poder, materializado num muro com várias torres (castelo), e demonstração de a segurança ser possível num mundo repleto de perigos.

Curiosamente, o muro mais conhecido de sempre, o Muro de Berlim, não tinha ambições de separar, em função da identidade cultural, ou de manter afastados inimigos externos. O objetivo era estancar o fluxo de saída para o mundo Ocidental. O inimigo poderia estar já na sociedade e a identidade cultural não era importante quando o que se pretendia era alterar a sociedade a partir do sistema político-económico. Tal como numa ferida, importa que o sangue pare de jorrar o quanto antes, para não desfalecer.

Os dados referem que passámos de seis muros, em 1989, para 63 presentemente. Os mesmos dados concluem que vivemos num mundo de muros. Concordo que vivemos num mundo de muros, mas discordo face ao seu número. Os dados apontam para os muros externos. Esses são perigosos, sem dúvida, mas não tanto quanto os muros invisíveis. O pior muro é aquele que não pode ser visto, porque o que não pode ser visto, não pode ser atacado.

Os muros que carregamos podem ser de várias ordens. Existe o muro do racismo, que divide as pessoas por caraterísticas exteriores; muros ideológicos, com uma sociedade mais polarizada e incapaz de dialogar com o lado oposto. Muros como do preconceito, seja de género, idade ou em função das condições materiais de vida; muros que se erguem quando se descobre que aquela pessoa, afinal, vive num bairro social.

Existem muitos mais muros. Lidamos com eles diariamente e, por vezes, sem nos darmos conta de que eles estão ali. Sempre estiveram. Cada um destes muros não nos é inerente, foi-nos sendo inculcados paulatinamente, por uma socialização constante que nos permite aprender a viver numa sociedade, mas que também traz implicitamente quem cumpre determinados critérios para fazer parte ou não do nosso grupo. Sem que nos apercebamos, com uma piada aparentemente inocente aqui, com determinados papeis a serem desempenhados por indivíduos com caraterísticas muito específicas, que nos lembram de como a sociedade se projeta a ela própria nas diferentes artes.

É um trabalho duro e difícil, porque requer um esforço de autoanálise para conseguirmos identificá-los e, depois, desconstruí-los. Se há algo que a História nos ensina, é que não importa o quão largo, profundo, extenso ou alto seja, todos os muros podem ser derrubados ou galgados. Basta que a mesma vontade que animou a construção seja usada para o seu derrube.

[1] Ainda subsiste esta ideia pelas definições de simples de qualquer dicionário. Uma pesquisa rápida no Priberam descreve o bárbaro como alguém “que é rude ou grosseiro; que ou quem não é considerado civilizado”; já no Infopédia, a definição é ainda mais clara: “primitivo; incivilizado; rude; grosseiro; cruel; brutal; desumano”. Todas elas revelam um elemento comum: o Outro é desumanizado.

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