Nomadland

Em Nomadland (2020), a realizadora Chloé Zhao procura dramatizar uma realidade em expansão nos EUA: o Nomadismo Económico. Fruto da recessão económica de 2008, que levou centenas de milhares de famílias a perder as suas poupanças, trabalhos e, sobretudo, habitações, muitos desses indivíduos (que se aproximam, na sua grande maioria, da idade de reforma) recorrem a carrinhas, carros ou caravanas como a última forma de terem algum abrigo e condições mínimas e materiais para sobreviver. Fern, a protagonista, interpretada brilhantemente por Frances Mcdormand, serve como embaixadora deste estilo de vida sobre quatro rodas.

Apropriadamente apelidada a partir de uma planta que não dá sementes ou flores, Fern, viúva e sem filhos, viaja pelos EUA em busca de trabalho sazonal. A sua personalidade estoica e independente leva-a inúmeras vezes a uma aparente e desejada solidão, mas sempre acompanhada por paisagens, vistas e horizontes americanos de uma beleza e serenidade inigualáveis. Os momentos onde no trabalho conhece colegas em situação semelhante ou até quando é convidada a participar numa reunião promovida por Bob Wells (personalidade famosa no mundo nómada e criador de conteúdos no YouTube), levam o espectador a presenciar a quietude, amizade e simplicidade que tal estilo de vida poderá albergar.

Mais do que procurar incentivar a tal estilo de vida, arriscando embelezar a precariedade e pobreza material resultado de consequências macroeconómicas, Nomadland parece querer sugerir que, por mais que se considere ter batido no fundo, é possível obter vislumbres de beleza e significado em qualquer forma de vida, mais que não seja para continuar a perseverar. A beleza cénica e amizade que se encontra no nomadismo de sobrevivência oferece instâncias de comunidade e generosidade que acabam por conter em si as sementes para uma boa vida. Esta é uma dimensão raramente retratada artisticamente. Felizmente, Nomadland parece ser um filme que tem o seu coração no sítio certo, focando-se menos no conteúdo económico e político, e mais no processo de humanização de pessoas que, fruto de conjunturas indesejadas (ou por simples escolha pessoal), encontram-se a viver uma vida amplamente diferente daquela do espectador.

Muito do que une estes nómadas, para além das vicissitudes económicas e uma paixão pelo estilo de vida em contínuo movimento, é o modo como cada um tenta lidar com o seu passado. Os nómadas em Nomadland aproximam-se da sua idade de reforma e, como tal, com histórias e acontecimentos de vida, recheados de momentos traumáticos, belos e sublimes. O desabafo emocional de Bob Ross sobre o seu filho que faleceu representa um dos poucos momentos catárticos de um filme que pauta pela sua aversão à self-pity ou ao sentimentalismo fácil, bem como a uma tradicional estrutura narrativa, com princípio, meio e fim. A narrativa reflecte a conduta estoica e lacónica da sua protagonista.

Nomadland pauta-se pela sua serena exposição de diversos momentos onde Fern se cruza com indivíduos que, de uma forma ou de outra, partilham da sua história e tentam lidar o melhor que conseguem com o mundo que  escolheram e que se lhes manifesta. A dignidade que surge deste estilo de vida transparece não só no modo como Fern vive a sua vida e os indivíduos com que se cruza, mas também no contraste com pessoas que não partilham do mesmo estilo de vida e se sentem confusas ou animosas para com ela e aquilo que representa (o episódio em que decide visitar a sua irmã para pedir dinheiro para consertar a sua carrinha/casa). Quer estejam a fazer hambúrgueres, a limpar casas de banho de campismo ou a empacotar encomendas em armazéns da Amazon, a composição e decoro com que estes nómadas habitam e entrelaçam as suas vidas com as necessidades temporárias de uma economia e sociedade que lhes virou as costas e que só necessita deles para “tapar-buracos”, demonstra a capacidade humana de descobrir e reinventar-se, de modo a suportar um duro caminho de sobrevivência que, muitas vezes, não oferece uma meta de felicidade. Para a maioria destes nómadas, a única coisa que lhes resta é a jornada.

Por fim, não deixa de ser curioso que um filme que procura retratar um estilo de vida nómada, entrelaçado por paisagens sublimes e, por vezes, entoadas com uma melancolia da passagem e efemeridade da vida, seja lançado numa altura em que a população mundial se encontra, na sua maioria, limitada nas suas deslocações,  encarcerada em quatro paredes imóveis, fruto da pandemia mundial que se encontra a levar muitas famílias e indivíduos a consequências semelhantes àquelas que aconteceram aos baby boomers durante a crise de 2008. A semelhança é óbvia. E mais do que cair para uma conclusão política, moralista e acusadora, Nomadland escusa-se de qualquer grito de acusação ou activismo. Ao invés, procura serenamente demonstrar que, mesmo que pareça não se avistar qualquer meta, há valor no caminho por percorrer.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico.
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