Nem sequer acabou de ler o livro. Colocou-o junto ao peito, apertando-o, como se se consolasse. Notou-se ridículo e descontrolado, e então pousou o livro no seu colo. Ficou muitas horas assim, sentado no sofá a pensar, a imagem da tranquilidade se alguém estivesse a observá-lo, mas só ele sabia a inquietação que fervia dentro. Dentro do seu corpo paralisado, tremia como se estivesse no meio de uma ventania. E pensava, e pensava, e pensava. Olhava para o nada, embora a vista estivesse virada para a porta. Possivelmente esperava que ela entrasse por aquela porta e o levasse de volta ao passado, quando ele ainda não tinha lido aquele livro. Quando ele lutava para continuar debaixo de água, numa inocência forçada. Lentamente, como um tetris, a mente mostrava-lhe como tudo estava a encaixar quando assimilou, finalmente, o que há tantos anos sabia.
Depois de umas horas, como se acordasse de repente de um transe, levantou-se. Abriu o livro na última página que tinha lido e pousou-o numa cadeira de madeira que estava ao lado da porta. Tirou os óculos e pousou-os em cima do livro. Sabia a página de cor. Sabia a citação de cor.
“Naquele pequeno gesto, ele finalmente permitiu-se ver que ela já não o amava.”
As palavras adiam na sua mente. Ao lê-las, apercebeu-se que ela, a mulher dele, também já não o amava. Não; ao lê-las, foi confrontado com aquela realidade que não podia negar, e também ele se permitiu pensar, num misto de horror e honestidade crua, nos seus últimos dias.
Há verdades que nos caem nas mãos sem avisar. Por vezes, caem por nossa culpa, porque ouvimos algo que não devíamos em vez de ter o cuidado de tapar os ouvidos a tudo o que não fosse inocência. Ou porque insistimos que nos contassem, com birras e pedidos e adivinhas, e afinal as verdades que esperávamos ouvir eram grandes enganos que tínhamos permitido que nos embalassem. Outras caem sem querer, porque alguém nos atira essas verdades, sem pedirmos, como lâminas, e quando as agarramos cortamo-nos. Ou porque as lemos, de repente, como uma pequena frase sem sentido que nos arranca as cortinas do engano. Foi assim que ele descobriu. Ele não pediu aquela verdade; não fez birras, não perguntou. No fundo, como sussurros atrás de portas fechadas, intuía saber algo que não conseguia aceitar.
A verdade liberta, dizem. Talvez. Talvez, considera ele, levantando os ombros e colocando a cabeça de lado, como se ajudasse a pensar melhor. Mas por vezes, antes dessa aceitação e dessa libertação, pode existir um estilhaçar de pequenos pedaços de alma, como vidros. Os dele, como se tivessem espalhados pelo chão e fugido para baixo dos armários, foram impossíveis de apanhar e juntar e tentar fazer com que a imagem parecesse, de novo, intocada. Não podia voltar atrás naquela descoberta.
Saiu da sala e foi até ao quarto. Os dias tinham passado, era inegável. Entendeu, pela primeira vez, que na realidade o quarto já nem o cheiro dela tinha, já nem um resquício de esperança se prendia nos armários, nas gavetas, nas colchas. Só cheira a ele e a frio. Em cima da cómoda estava a carta que ele tinha ignorado durante tantos dias, preso na mentira e na esperança como numa teia. Se não lesse, nunca aconteceria. Abriu-a. Deixou-a cair no chão quando enterrou a cara, a chorar, na almofada que já não tinha o aroma da mulher.