Vinte anos depois

Há vinte anos, o mundo mudou quando olhaste para cima, e me encheste com os teus olhos cor de mel. Mesmo sem te conhecer, naquele instante consegui suspeitar o teu atrevimento e o teu carinho, consegui espreitar o futuro assim que olhaste para mim.

Continuaste a ir ao café onde eu trabalhava, continuaste a querer ver-me. Como é que te podia dizer que não, se tanto insistias?

Apaixonei-me, envergonho-me de dizer. Mas tinhas mulher, tal como eu tinha marido. Não fui capaz de voltar a ver o meu marido assim que possuíste o meu olhar com os teus olhos. Divorciei-me no dia a seguir às tuas mãos tocarem o meu corpo numa pensão barata que alugaste por duas horas. A primeira vez. Tu, nunca te apaixonaste, nem sequer vacilaste entre sentimentos. Tu conseguias olhar-me nua e suada vezes sem conta, para a seguir despir a tua mulher enquanto a beijavas, ainda com a minha pele nos teus lábios. Eu fui mais honesta.

Hoje, vi-te de novo, e recordei-me de ti. Nunca desapareceste da minha memória, claro que não, mas estavas escondido num canto e agora voltaste. Estavas com alguém, com uma mulher, e supus que fosse a de sempre, aquela a quem nunca tinhas deixado por mim. Depois de vinte anos, tanto despeito? Não, não; apenas a maneira egocêntrica de recordar-me das coisas. Apenas a verdade. A verdade é sempre subjectiva quando envolve humanos, e esta é a minha verdade tal como eu a sei e conheço. Almoçavas com ela, e eu entrei para beber um café. Vi-te imediatamente, como se me tivesses chamado, mas tu nunca olhaste para mim. Vinte anos depois, e só os olhos é que não tinham mudado, mas reconheci-te como se tivesses acabado de sair daquela pensão onde nos encontrávamos. Vinte anos depois, e sentia cólicas e nervoso miudinho só de saber que estavas no mesmo lugar que eu, só de recordar a tua língua, e a tua boca no meu peito. Que parva! Vi-te, e sorrias, pegavas-lhe na mão, servias-lhe o vinho enquanto olhavas para ela, directamente para ela como se a visses por primeira vez. Aquilo sim, eras tu apaixonado; não a tua cabeça entre as minhas pernas nem as tuas ancas a baterem nas minhas coxas. Connosco era só desejo, por mais que a minha cabeça tivesse inventado amor.

Não sei quanto tempo fiquei a ver, a olhar, a perceber a tua verdade. A perceber que ainda estava apaixonada. Saí do café, confusa e envergonhada. Com vontade de chegar a casa e deixar o meu segundo marido, correr para os teus braços naquele café. Com vontade de contar-lhe a ela, àquela que nunca deixaste, o nosso segredo, e quebrar esse laço invisível entre vocês dois, para não teres outro remédio senão teres-me. Que parva! Vinte anos depois, que parva que continuo a ser.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Desemprego: Educação, Local e Ocupação são as palavras-chave

Next Post

A porteira da arte

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Truques de bruxa

Fazes questão de beber dos copos que ainda têm os meus lábios lá colados. Em noites antigas mordias-me num…

O resto – Parte 1

Estava a arrumar a mala velha onde colocava, sem método, tudo o que precisava de ser arrumado. Quando tiver…