Os dias de amanhã

Tenho sempre à mão, sobre a secretária, as crónicas de Victor Cunha Rego publicadas no DN e reunidas no livro Os Dias de Amanhã, editado em 1999. Releio-as com a mesma frequência, com que releio As Farpas, do Eça, As Memórias, de Raul Brandão, ou A Pátria, de Guerra Junqueiro, entre vários outros livros arrumados na mesma pilha.

Não há nada sobre nós, portugueses, e sobre o nosso destino colectivo, que não esteja escrito desde há muitos anos – desde há mais de 150 anos. Hoje, apenas produzimos o eco (quase sempre com menos lucidez e talento) de todos os alertas que nos foram transmitidos, décadas e décadas a fio. É como se andássemos, por prazer, a tirar água à nora, de olhos vendados.

Com a ingenuidade de quem não percebe o que se passa, todos os dias repetimos frases escritas há mais de um século, como se tivessem sido impressas ontem. Citamos Eça de Queirós, aliviando a consciência e prosseguindo a marcha para o abismo: “O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte, o país está perdido!” Ou lembramo-nos de Guerra Junqueiro: “Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas.” O País continua perdido, como no período de decadência do rotativismo e no estertor da monarquia e não se vislumbra, como então, um mostrar de dentes, ou a energia dum coice. Pinheiro de Azevedo tinha razão, quando gritou numa varanda, no Terreiro do Paço: “É só fumaça! O povo é sereno. O povo é sereno.

Porém, no nosso tempo (e a tempo), também há quem nos avisasse da decadência em que nos íamos, aos poucos, atolando. Entre os intelectuais contemporâneos mais lúcidos conta-se Victor Cunha Rego. As suas crónicas, no DN, despretensiosas e simples, lidas à distância de duas décadas, mostram a clarividência com que o autor via os Dias de Amanhã – os dias de hoje. Nos anos noventa, quando a euforia dos negócios, da construção, das austo-estradas e da “ascensão social” estava na berra, ele avisou: “As direitas – a medíocre e a outra que o não é – estão à beira de vencer a grande batalha. Os partidos socialistas – a vaselina destas reformas – ou serão depois, descartáveis ou acontece um milagre (político) e os excluídos tomam conta deles.” Os socialistas gregos – pelo menos e até ver outros desenlaces – deviam ter lido as crónicas de Victor Cunha Rego. Também já tinha advertido: “Em toda a Europa do Sul, pelo menos, ou as classes dirigentes mandam pela borda fora, por corrupção ou incompetência, muitos dos seus membros mais notórios – o que parece muito difícil – ou a comunicação social, os magistrados e a opinião pública fá-lo-ão. A dúvida está em saber se o resultado desta inevitável luta não conduzirá aos autoritarismos”.  Pois, é esta a dúvida que, não só na Europa do Sul, mas em toda a Europa, estamos a viver. Em 1997, avisou António Guterres, então primeiro-ministro: “Se os que estão no governo abrem caminho a Cavaco, merecerão o que lhes toca. Cavaco Silva seria o desertificador da vida política portuguesa.” E mereceram!

Avisos não nos têm faltado. Fazemos sempre orelhas moucas, mas como escreveu Victor Cunha Rego: “Se a esquerda percebesse o que se está a passar as populações também perceberiam…

E por aqui me fico.

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