Passo diariamente naquela estrada, quase no centro de Lisboa. De manhã, olhando atentamente o relógio, para que não me atrase, à tarde, ou agora noite, no saborear descontraído do regresso a casa. Mas nem sempre me recordo de o fazer.
Sempre que efectuamos actos regulares, parece que ligamos um autómato, o que não deixa de ser eficiente, porque de facto percorremos o trilho pensado, mas não o fazemos conscientes do mesmo. Passamos além, sem que o tenhamos sentido. Um pouco como quando travamos face a um transeunte que aparece, mas nem o vimos a aparecer, parece que não estávamos atentos, no entanto impedimos o embate.
Muitas vezes fiz esse caminho sem a lucidez de o perceber, de o absorver. E às vezes esse alheamento suportado pelo automatismo impede-nos de ver o que merece ser visto. Outras vezes protege-nos.
Não é de agora que me apercebi daquelas 3 tendas individuais, a que se junta uma mesa improvisada e mais alguns pequenos objectos, abrigados sob um toldo duma fábrica em inactividade. Quando passo de manhã, na urgência possível, numa zona de delimitação de velocidade aos 50 km /h, vejo muitas vezes os habitantes desse acampamento provisoriamente definitivo a levantarem-se. Ao fim do dia, estão muitas vezes a conversar, sentados em cadeiras de diferentes proveniências e estilos. Como eles, afinal.
Naquele dia, com o escurecer precoce, e com o trânsito lento, consequência das viaturas que afrouxam para não activarem o sensor de velocidade que já deu dores a muitos, olhei para o lado. Imediatamente ao meu lado está o carro que segue no sentido oposto, mas para além dele, por cima da tenda, há um brilho prateado que reflecte a pouca luz. Parada no semáforo, observo, inquieta, e vejo que as outras tendas têm também algo sobre elas, um brilho inequívoco, mas não percebo do que se trata. Guardo na minha agenda mental a vontade de, no dia seguinte, quando passar mesmo ao lado, verificar o que brilha.
De manhã, curiosa, faço por me deixar na faixa da direita o mais possível, e passar mesmo ao lado. Abrando, sem poder parar, correndo o risco de ser olhada com desagrado pelos habitantes desse local que trincam qualquer coisa nesse momento. Fico atónita com o que vejo: com a luz matinal, percebo que se tratam de fitas de natal prateadas, algumas estrelas, e as 3 tendas estão unidas por elas. Fiquei perplexa.
Nunca tinha visto tal coisa, e infelizmente, nos meus caminhos diários passo, de Xabregas a Alcântara, por muitos sem-abrigo, como já vos falei outras vezes. Andei vários dias a matutar no assunto, sem grande evolução confesso, presa a um pensamento de que não me orgulho, na praticabilidade do raciocínio e na rapidez de erro do juízo: o que faz estas pessoas, que não têm o elementar, ter esta acção de decorar aquilo que nem casa é?!
Um dia, alguém me disse que, quando não se consegue pensar, o melhor é sentir. E eu, que gostaria de ter parado, de ter visto e de ter sentido o ambiente, não o podia fazer. Talvez, entre o atrevimento e o medo, tivesse gostado de falar com algum deles, mas também me pareceu ultrajante colocar-lhes semelhante questão, como se tivesse eu a norma do que lhes é ou não permitido pensar ou esperar.
E assim andei vários dias, a avistar de manhã, a observar à tarde. Na minha mente as frases do Saramago: se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara. E eu olhava, quase via, mas não reparava.
E então, casualmente, lembrei-me dum artigo que li há muito, sobre as pessoas que decoram o seu local de trabalho com bens pessoais: fotos, lembranças, ofertas. Na sua génese está um de dois significados: ou a pessoa se sente tão bem no local que este surge como prolongamento do seu lar, ou, a contrário, não se sentindo confortável, procura amenizar o desalento com o que faz parte da sua vida privada.
E por essa via de pensamento, talvez não seja uma ousadia ou uma desfaçatez, como pensei a princípio (mea culpa), ir além da busca dos bens essenciais que não têm e procurarem um pouco de luz natalícia.
Acaba quase por ser indiferente se a rua é a sua escolha consciente (é sabido que há pessoas que não querem ser institucionalizadas), ou se se acomodaram ao facto, ou mesmo se ainda têm vontade de ver a sua vida melhorar. O que é comum a todos estes pensares, é um bem talvez tão ou mais essencial, que é celebrarem a sua humanidade.
Talvez o facto de algo mudar no meio em que habitam (?) não seja senão a vontade de acreditar na possibilidade da renovação da vida, de forma católica ou nem por isso. Poderá também ser uma necessidade de se sentirem parte integrante duma sociedade onde, entre mal e pior, ainda coexistem. Ou talvez possa ainda ser uma forma de diferenciarem os seus dias e, dar-lhes significado.
O ritual da decoração natalícia é, mesmo para muitos de nós que têm uma casa, uma cama e comida na mesa, uma necessidade espiritual, ou, arrisco a dizer, emocional. O sentido de pertença a uma comunidade, o reviver de felicidades passadas, o dar compasso e significado a um espaço temporal e mesmo a uma vida, tudo isso é propiciado pela repetição dum acto a que atribuímos, de forma velada, ou não um simbolismo. É esperança, é fé.
Por isso, agora, quando passo, porque não resisto a fazê-lo, olho para aqueles 3 homens que – e agora sim, uso sem pejo a palavra – OUSARAM ir além do material que não têm, e mantêm a resiliência de permanecerem humanos. Apesar de.