O Diálogo Entre a Música e o Cinema

Oficialmente, o cinema existe desde 28 de Dezembro de 1895, data em que as experiências incipientes dos irmãos Auguste e Louis Lumière, com o “cinematógrafo”, espantaram o público burguês do Grand Café de Paris. Os inventores do cinema lançaram as bases desta emergente linguagem artística com filmagens de um minuto, nas quais mostravam a vida quotidiana de cidadãos comuns.

Apesar do sucesso popular imediato daquelas sessões de projeção cinematográfica (por onde passou o escritor Eça de Queiroz), os irmãos Lumière não auguravam futuro comercial, ou artístico para o cinema. Felizmente que outro francês, George Méliès (realizador do célebre filme Viagem à Luaconsiderada a primeira ficção do cinema), não pensava da mesma forma e desenvolveu, sobremaneira, a linguagem cinematográfica, ainda que muito ligada à estética teatral. Depois, outros notáveis realizadores se encarregariam de desenvolver a linguagem do cinema de distintas formas.

O que é certo é que, durante os primeiros 30 anos da sua história, o cinema foi mudo, mas não totalmente silencioso. Significa isto que o som estava ausente das imagens, apenas havendo um ou outro acompanhamento de piano, de narração contando o filme, ou de uma pequena orquestra, durante a exibição pública, geralmente tocando por detrás da tela de projeção. Algumas ténues experiências foram feitas na conjugação som-imagem, nomeadamente, na utilização que alguns realizadores fizeram recorrendo a músicas de compositores clássicos, como Saint-Saëns, Pizzetti, ou Satie. Curiosamente, outros grandes compositores, como Stravinsky, Bartók, Ravel ou Schoenberg, que se aventuraram na criação de música para filmes, manifestaram-se ineptos criadores de bandas sonoras para cinema. Daí que a relação entre o cinema e a música seja uma relação artística complexa e problemática, uma vez que se reveste de múltiplas facetas e visões distintas, levantando determinadas questões pertinentes que praticamente se mantêm vivas até hoje: será a música para cinema meramente ilustrativa? Os compositores para cinema são compositores de primeira, ou de segunda? A banda sonora para filme é um género à parte da restante produção musical? Um filme fica mais rico se tiver sempre uma partitura original (como nos filmes de Spielberg), ou bandas sonoras adaptadas (como nos filmes de Kubrick)?

Nos primórdios, por impossibilidade técnica, o filme era desprovido de som (banda sonora, ou diálogos) e os realizadores e espectadores pouco se importavam com isso. A interpretação dos actores era mais física e expressiva, uma vez que o som dos diálogos era inexistente. Dava-se relevo às imagens e às suas múltiplas formas expressivas. Quando o sonoro surgiu, no filme The Jazz Singer (1927, com o ator Al Jonhson a imitar um cantor de jazz negro), houve alguma resistência por parte de grandes vultos do cinema à novidade técnica do som. O próprio Charlie Chaplin chegou a dizer que o som iria “matar o cinema”. Greta Garbo foi das poucas actrizes que se conseguiu afirmar no período sonoro com a mesma veemência com que o tinha feito no mudo. A revolução do sonoro tinha começado. Apesar da ausência de som e de música, este foi um período extremamente criativo no que se refere à consolidação da linguagem artística do cinema, enquanto forma estética (montagem, realização, fotografia, cenários) e objecto semiótico (narrativo, ficcional, documental).

Determinados filmes foram efectivamente silenciosos, durante décadas. Chaplin musicou, ele próprio, os filmes Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936), apenas durante a década de 60. O cineasta espanhol Luis Buñuel fez o mesmo com a obra-prima Un Chien Andalou (1929), à qual adicionou a banda sonora (tango argentino) 35 anos depois da estreia. Ou seja, os realizadores de cinema cedo se aperceberam da grande importância que a música detinha como complemento das imagens, como elemento crucial para ilustrar a história do filme. Por isso, Sergei Eisenstein trabalhou logo em 1938 com o compositor Sergei Prokofiev, que compôs a banda sonora épica do filme Alexander Nevsky, num exemplo acabado da perfeita sincronia criativa entre imagem e som. Os sons (no sentido da sonorização da narrativa) e a banda sonora (a música propriamente dita com funcionalidade dramática) desempenham um motor emocional próprio no espectador, desencadeando reações que não seriam possíveis, caso não houvesse essa componente sonora.

Durante o período áureo da indústria de Hollywood – dos anos 40 a 60 do século XX – revelaram-se grandes compositores para cinema: Bernard Herrmann (este é mesmo considerado o compositor mais influente de sempre), Elmer Bernstein, Nino Rota, Ennio Morricone, Henri Mancini, Alex North, Maurice Jarre, Dimitri Tiomkin, Max Steiner, Alfred Newman, entre muitos outros. Hoje qualquer cinéfilo identifica a ligação estética (e de cumplicidade) entre determinados cineastas e músicos: David Cronenberg e a música de Howard Shore, Sergio Leone e a música de Ennio Morricone, Steven Spielberg e a música de John WilliamsAlfred Hitchcock e a música de Bernard Herrmann, Tim Burton e a música de Danny ElfmanPeter Greenaway e a música de Michael Nyman, etc. No entanto, também é interessante registar que, ao longo da história do cinema, houve muitos realizadores que optaram por não utilizar qualquer música nos seus filmes e, ainda assim, não deixaram de ser grandes filmes. É o caso de alguns filmes de Sydney Lumet, Ingmar Bergman, John Cassavetes, Alfred Hitchcock (Birds não tem uma nota de música) e mais recentemente filmes como Cast Away, No Country For Old Man, Hunger, Caché, entre outros.

Por outro lado, durante os últimos anos, uma das interessantes estratégias de reabilitação do cinema mudo tem acontecido com o fenómeno dos cine-concertos (ou filmes-concertos). Isto é, filmes que são acompanhados com música original interpretada ao vivo e em tempo real da projecção. Há inclusive compositores e grupos musicais que se dedicam exclusivamente à criação de bandas sonoras para filmes mudos, como é o caso do bem-sucedido trio norte-americano Alloy Orchestra (que musicou clássicos de Murnau, Chaplin, Eisenstein, ou Buster Keaton). Projectos de diversas proveniências estéticas e nacionalidades têm criado música original para filmes imortais do período mudo, abrindo novos campos de experiências estéticas com a confluência dos filmes com os concertos ao vivo: Art ZoydPet Shop Boys, Cinematic Orchestra e, em Portugal, com experiências levadas a cabo por Clã, Mário LaginhaBernardo Sassetti, Pedro Burmester, Nuno Rebelo, ou Kubik.

No fundo, a música fará sempre parte da imensa história do cinema e o diálogo entre as imagens e os sons continuará a maravilhar e surpreender os espectadores.

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