O Miguel ficou a dormir. Um sono que não tem sonhos nem pesadelos. O sono dos justos. O sono de quem viveu 16 anos e deu imensas alegrias a muitos. O Miguel era de todos e sabia falar.
Todos os anos fazia a dieta do Verão e recuperava com facilidade. Este ano o calor foi mais intenso e a idade não lhe permitiu que a juventude voltasse. Ficou muito magro. E calou-se, o que era raro nele. Tinha sons para tudo e sabíamos sempre por onde andava e o que fazia.
Tentei mudar a alimentação. Como já não aguentava a ração, passou à húmida e adorou! Que coisa maravilhosa que ele estava a provar. Os patês eram o melhor manjar que podia ter. A seguir vinha sempre o soninho que gato que é gato precisa de dormir muitas horas.
Não engordou, mas recuperou algumas vozes. Não todas. E ainda estava mais meigo. O Miguel é um doce de gato. Era. Gostava de colos, de pescoços e de tudo onde o calor humano pudesse ser sentido. Queria atenção. Um rapaz tão belo e sexy precisava de público.
Nos últimos dias desenvolveu uma barriga estranha, mas parecia não o incomodar. Continuava a sua vida atarefadíssima de pedir festas e cantarolar quando andava de um lado para o outro da casa. Mexia-se bem. Continuava a sua tarefa de animador cultural.
Contudo, a tal barriga passou a incomodar e não lhe permitia subir para o seu estimado balcão, nem estar à janela, como tanto gostava, ou em cima da mesa. As forças falharam e só o banco do Zeca, o seu antecessor, lhe estava disponível.
Deitou-se na cama dos cães, o que já não fazia há muito. Baralhou o lugar da caixa e perdeu-se dentro de si. Era apenas um invólucro, pois o Miguel, o Miguelinho fofo, já estava de partida. O dia tinha nascido cinzento por dentro e acabou por ficar ainda mais escuro.
A veterinária foi uma querida, como sempre. Nada mais havia a fazer. A decisão urgia, mesmo que fosse dolorosa e carregada de dores. O sofrimento não podia continuar. E assim decidi que devia ficar a dormir.
Raios partam a porcaria do cancro. É o segundo gato que me arrebata este ano. O pouco que havia a fazer era dar-lhe o conforto necessário e foi isso que aconteceu. Olhou para mim e percebeu. Eles sabem. O fim era ali.
Não sei bem se eram as lágrimas dele ou as minhas, mas o certo é que a dor instalou-se na garganta e o coração começou a sangrar. Miguel para sempre. Um gato tão meigo que até o doce aprendia com ele.