Simplicidade

Dia de nuvens que se agigantam. Peso forte nos ombros e respiração que teima em doer. A almofada tem um poder enorme, mas a vida urge em chamar. Falta de vontade ou preguiça? A linha é tão ténue que se pode confundir. Levanto-me e saio de casa. Entro numa loja e reparo na panóplia de inutilidades. Ou será que não lhes encontro préstimo?

Decido o que fazer. A roupa não quer colaborar, mas tem que ser. O dia está áspero e picante de olhos. Sinto vontade de chorar, mas as lágrimas encolhem-se unidas. Haja coerência nas atitudes. Respiro fundo e sigo o ritmo do dia. Vou tratar de um assunto burocrático.

Duas funcionárias conversam. Fazem bem que o trabalho assim tem mais valor. Colocam a máscara. Gesto mecânico e contrariado. Solto uma piada parva: venho actualizar a minha quota de sócia. Riem as duas com prazer. Era apenas comprar o passe. Ainda bem.

Na gare, sou abordada, à descarada, para uma tarde de cariz sexual. Não sei se deva rir ou dar um banano no rapaz. Há gostos para tudo, como se sabe. Fez-me rir por dentro e por fora. Já me sinto com mais energia. Hesito entre calças ou vestido, que nada tem a ver com o caso.

No metro parado, reparo numa varanda. Dois velhotes abraçam-se. Que ternura. Gostava de ter eternizado o momento. O meu coração bateu mais forte. O amor é uma bomba calórica. Que sorte as almas velhas e gémeas se unirem. Os meus olhos colam-se e fico a vê-los desaparecer.

Uma rapariga conta a outra que tinha feito uma boa acção, ajudou um senhor a carregar uma mochila muito pesada. A outra soltava uns sons de aprovação. A voz da miúda tinha alegria. Sentir-se útil dá energia e faz crescer. Um pouco que foi tanto e fez sentido.

Dois rapazes ligam o telemóvel e poluem o ambiente sonoro. Um deles começa a dançar. Os olhos viram-se para ele. Quer fazer uma pirueta e cai. Solta-se a sonora gargalhada geral. Levanto-me e agarro-lhe o pulso. Está aberto. Vejo umas lágrimas a saírem. Ignoro. São de humilhação e vergonha. Ligo-lhe o pulso. Recomendo que vá ao médico.

Saio na estação seguinte e sento-me num banco. Abordam-me novamente. Uma rapariga magra e a avó, uma senhora com ar distinto. Pedem-me um conselho. Ofereço uma sugestão. Agradecem e seguem. Duas senhoras sentam-se ao meu lado. Queixam-se do chefe que as faz penar. Hoje tenho cara de padre, no mínimo.

Um homem fala ao telefone com tanta delicadeza que parecem carícias de amor. É uma boa oportunidade de descontrair. O tema é interessante, produtos de limpeza. Sem querer oiço tudo. Despede-se e vai enviar a encomenda. Entra no prédio. A Miau, uma gata de rua sentou-se ao meu lado. Pede festas e fala comigo. Ronrona e quer mais.

Onde é que eu ia? Tinha acordado virada do avesso? A vida é uma enorme caixa de surpresas e de constantes aventuras. Ainda nem cheguei ao meio da tarde e sinto que vivi outra vida. Desanimar não serve de nada. Há que se ser assertivo e abrir o coração para o viver.

Há sempre surpresas que podem não ter laços nem chegar embrulhadas. Cada dia é mais uma aventura. Tudo está à vista, cheio de pistas e mensagens, vidas que se oferecem em pleno, sonhos que gravitam e tantos outros que ainda estão por realizar.  Esta arte de estar vivo tem requintes de deslumbrar.

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