Quantos de nós já desejou um local quente onde se enroscar, naquelas estradas sujas e frias que tanto percorremos, a caminho do trabalho? Quantos de nós buscaram, em vão, um abrigo para a alma, onde o corpo não chega, quando a chuva cai e já não temos para onde ir? Provavelmente, o leitor não se identifica com nenhuma destas situações. Nunca vagueou, mais do que perdido, pelas ruas da calçada, sem saber para onde ir, quando o objectivo é incerto. Nunca teve que dormir calçado, preparado para fugir, caso lhe tentassem maltratar a meio da noite, no meio de uma cidade tão sua conhecida, mas que tão pouco lhe pertence. Pois bem, esta é a história de todos aqueles que, por mera ocasião e capricho da vida, já tiveram que enfrentar o seu pior estatuto. Bem-vindos, à sua humilde casa, a solidão.
Como a AMI – assistência médica internacional – explica, “em toda a Europa o fenómeno dos sem-abrigo é reconhecido como um grave problema social não tendo sido, contudo, fácil colocá-lo na agenda política europeia ou nacional. No entanto, têm-se feito alguns avanços na tentativa de dar uma dimensão estatística ao fenómeno, tentando ultrapassar o senso-comum da sua visualização”. Apesar dos esforços, esta é uma realidade que caracteriza o aspecto e ornamento de muitas cidades, levando-me a questionar se já não farão parte da estrutura de classes. Desta forma, poderíamos falar na existência de 4 classes socio-económicas, inversamente ao típico trio apontado, sendo estas traduzidas em: classe alta; classe média; classe baixa; homens-lixo. E é aqui, meus caros leitores, que a vossa moral e indignação dão berros: homens-lixo? “Nem pensar! São tão dignos como qualquer um de nós”, diria a vossa consciência sabiamente.
Todavia, os vossos olhos denunciam o que a vossa cabeça não quer reconhecer: onde está este tratamento igual, que tanto defendem e usam agora como argumento, quando os ignoram no vosso caminho para o conforto do lar, para a ocupação do trabalho? Onde está toda essa indignação, quando os vossos governos não aprovam leis, decretos e incentivos para a proteção de quem pernoita debaixo de uma despida árvore e caminha sobre o sol fustigante, sem cuidados, segurança ou apoio? Pois, não está. E aí, lá vem essa consciência meritocrática: só vive na rua quem quer, porque não quer trabalhar e gostava era de viver à custa dos nossos impostos. E lá venho eu, de novo, perguntar: quantos de vós utiliza o sistema nacional de saúde, com fortes comparticipações estaduais, que vão muito além dos vossos impostos? Quantos de vós, cuja preguiça ataca, recorre a abonos, pensões não contributivas e subsídios de desemprego? Não estarão vocês, na vossa sabedoria e imponência arrogante, a consumir as contribuições de outros? Afinal, o que vos distancia tanto dos que simplesmente não têm casa?
Como Moura afirma, sem preconceitos ou meias medidas, “o nosso quotidiano civilizado está cheio desses seres que mantendo uma similar aparência física, se afastaram de tal maneira da humanidade que perderam o laço comum. Pelo que estão reunidas as condições objectivas e morais para a chacina dos homens-lixo. E essa é já uma prática quotidiana. Imposta pelas autoridades, desculpada pela moral pública, exigida pela economia”. Não se enganem: vocês, que nada fazem pelos bocados que vão morrendo na sociedade, que se vão descuidando com o próximo, que se esquecem de apoiar o próximo, são os humanos preenchidos de nenhuma humanidade. Vazios por dentro, com tanto preenchimento exterior. São o castelo com bonitas muralhas, que vive assombrado por dentro e desabitado.
Só que nem todos são iguais. Nunca se julga o todo pela parte, porém, é importante ter em conta que o todo é constituído por diversas partes. Assim, podemos distinguir algumas diferenças entre os vários homens-invisíveis que vão povoando as cidades e que são lembrados apenas no Natal.
Leanne Rivlin descreve os sem-abrigo com base na duração do período em que estes se encontram na rua e do consequente grau de vulnerabilidade. O autor distingue quatro formas e graus de sem abrigo:
- O crónico, associado ao alcoolismo e à toxicodependência, em que parte da sua vida é passada na rua, tendo apenas dinheiro suficiente para uma “pensão barata”. Este é capaz de manter uma rede de contactos sociais, ou formar pequenas comunidades com pessoas na mesma situação;
- O periódico, que tem casa, mas que a deixa quando a pressão se torna intensa, conduzindo-o para um albergue, ou mesmo para a rua, mantendo-se, no entanto, a casa acessível, quando as tensões acalmam (incluem-se aqui, entre outros, os trabalhadores migrantes que partem à procura de trabalho sazonal, ou mulheres que sofreram violência doméstica);
- O temporário, mais limitado no tempo que as outras formas, está numa situação de sem abrigo, devido a uma situação inesperada, mas a sua capacidade para ter e manter uma casa mantém-se estável (situação motivada, por exemplo, por um desastre natural, desemprego súbito, doença grave, ou uma mudança de comunidade);
- O total – considerado o mais catastrófico de todos – está traumatizado, devido ao facto de não ter casa, nem manter uma relação com a comunidade, podendo pernoitar num albergue nocturno, ou nas imediações de uma igreja, mas não tem casa. Apesar de as perspectivas futuras dependerem de cada indivíduo, o trama da total devastação dos seus suportes sociais e físicos ameaça seriamente os seus poderes de recuperação, levando a que se sinta incapacitado e com o destino traçado. Limita-se a sobreviver, um dia de cada vez. Desistiu de viver e de ter sonhos.
Não imaginava que podia, um dia, por motivos de azar, tropeços na vida e escorregões no quotidiano, encontrar-se nesta situação? Vê os diferentes graus? São como uma escada pelo qual deslizar se torna fácil, rápido e acidental e do qual é difícil voltar a subir. Pense nisso, amanhã, quando se levantar da cama e perceber que há quem não tenha, nem sequer um chão, pelo que agradecer. Reconsidere as suas prioridades e perceba que há quem não tenha entre o que escolher e priorizar. Seja amado, sem se esquecer de amar os outros. Não seja mais um, no país solitário, que tantos sem-abrigo acolhe.
São como uma escada pelo qual deslizar se torna fácil, rápido e acidental e do qual é difícil voltar a subir. Pense nisso, amanhã, quando se levantar da cama e perceber que há quem não tenha, nem sequer um chão, pelo que agradecer. Reconsidere as suas prioridades e perceba que há quem não tenha entre o que escolher e priorizar. Seja amado, sem se esquecer de amar os outros. Não seja mais um, no país solitário, que tantos sem-abrigo acolhe.