A chave na porta era a imagem da rotina angustiante em que ele sentia a sua vida mergulhada. Dia após dia, aquele movimento era invariável e o após também assim o era. Aquele dia, para seu infortúnio até acabava mais cedo. Não lhe foi permitido trabalhar até mais tarde como gostava e sempre fazia. Sentia que as horas ainda pesavam naquele dia, e afastavam o seu fim que ainda nem se vislumbrava. Abriu a porta e entrou em casa resignado.
Fechou a porta atrás de si e esperou que o som do trinco se esbatesse na escuridão. Olhou para o interior da casa e observou o silêncio do vazio que todos os dias encontrava quando ali chegava. Sabia que em poucos segundos iria ouvir as patas apressadas e o miar do seu gato, tão visível quanto audível, num olá que era ao mesmo tempo uma súplica por comida. Ele ira enrolar-se nas suas pernas e fazê-lo lembrar que não está só naquele apartamento nem na vida que partilham mesmo quando separados. Mas naquele dia nem isso aconteceu, “deve estar enrolado num quanto qualquer, nem quer saber que já aqui estou.” Aquela ausência do seu amigo felino nem era assim tão estranha, mais cedo ou mais ele iria acordar da preguiça em que vivia imerso e iria aparecer. Como gato que era escolhia ele as horas do que lhe interessava que acontecesse naquela casa, a sua casa, onde vivia também o seu dono. Ainda assim a denúncia da desilusão emanou do seu inexistente sorriso.
Pousou as coisas na cadeira mais próxima, que comprara com as outras para se fazerem companhia inanimadas, e ao fim do dia ter onde pousar as coisas. O negro tornou-se amarelo sem a cor que foi paulatinamente ganhando vida até se tornar branca e iluminar a sala. Foi à cozinha, abriu o frigorífico e serviu-se de uma cerveja. Fugiu rapidamente para a sala escapando do frio das paredes despidas de memórias. Deixou-se cair no sofá com a garrafa numa mão e o comando da televisão na outra. Àqueles dois objectos impunha-se que se gladiassem entre si pela honra de dar um pouco de ânimo àquele homem inanimado. Canal substitui canal, e outro e depois outro, entre goles de cerveja. A garrafa com o seu líquido dourado parecia estar a ganhar. Da televisão surgiam invasões constantes de objectos alusivos ao Natal que ele preferia não saber da existência. Deixava-se quebrar pela saudade quando o Natal não lhe dava escapatória no pensar, como naquele preciso momento em que desistiu do comando e perdeu-se num anúncio a um qualquer brinquedo. Sentiu uma gota salgada a escorrer face abaixo levando nela os nomes de pais e irmã que longe viviam juntos aqueles dias da natividade. Imaginava-os com gorros vermelhos, junto à árvore decorada com bolas, sinos e laçarotes, dourados, verdes e vermelhos. Com as cores da comida bem temperada e carinhosamente confeccionada, o paladar apurado pelo amor familiar com que a comida era degustada. Todos os sonhos, odores e cores sabia-os de cor. Mas estava longe desse mundo que já foi seu. Estava ali só, triste, nem o raio do bichano aparecia.
De repente ouviu uma porta a ranger. Virou o olhar e viu surgir uma luz vermelha no escuro. Um miar e a sua própria admiração a ecoar pela sala. O gato aproximou-se e saltou para o seu colo com um pulo suave e um olhar de amor incontestável. “Rodolfo?” Pergunta-se enquanto retira a bolinha com uma pequena luz vermelha que trazia presa no coleira para não cair. “Mas que raio?” Olhou em volta admirado e de repente, aquela sala cinzenta como a sua vida, com a sua luz branca e a bolinha vermelha do seu gato dourado, transformou-se. O cinzento da sua vida vestiu-se de mil e uma cores vindas do quarto. Um a um, para seu grande espanto, vê surgir a sua mãe, o seu pai, a sua irmã, cunhado, sobrinho, sobrinha, e o gato a ronronar ao seu ouvido, como que a contar que foi ele que para ali os chamou para dar cor ao Natal.