Foi nas aulas de Filosofia do 10º ano que ouvi falar pela primeira vez d’O Mundo de Sofia. O Vítor transmitia-nos a curiosidade primordial com uma paixão de adolescente: colocar questões, satisfazer inquietações com a consciência de que são tantas mais as dúvidas que nascem e derivam pela nossa vida do que as respostas que nos apaziguam. Eu era adolescente e o único lamento guardava-o para os testes – sempre os testes – quando aquela disciplina pedia tudo menos aqueles momentos de avaliação formal. Não recordo outra cadeira em que tenha experimentado aquela identificação com o que se passava do lado de cá da vida escolar, do lado de cá da carteira, do lado de cá do corpo que assistia às aulas em silêncio, guardando as questões para o final, do que no 10º ano de Filosofia. Foi a disciplina que cravou em mim a paixão pela leitura e o Vítor, na altura meu professor, hoje um dos meus melhores amigos, foi provavelmente o responsável maior por tal feito.
Vêm desse tempo referências que ficaram gravadas, e que mais tarde revisitei para ler e abrir portas de autores que ajudaram a construir e alimentar esta curiosidade de descobrir a realidade do outro lado do espelho da arte; Narciso e Goldmundo por exemplo, apresentou-me Hermann Hesse quando, aos vinte anos, comprei o título que me lembrava de ter sido mencionado pelo professor. Contudo, foi numa obra mais próxima do espírito vivido naquelas aulas que eu peguei, nas férias grandes desse ano, para arrancar à descoberta de algo que ainda hoje não sei o que é mas que perdura, quase a cruzar os quarenta: O Mundo de Sofia de Jostein Gaarder.
O livro levou-me numa viagem fantástica, não só pela história da Filosofia como para esse mundo maravilhoso do pasmo que a idade vai esbatendo e a rotina escondendo. Ter lido esta obra na adolescência foi um bem que me levou a procurar outros livros do autor norueguês.
Jostein Gaarder nasceu em Oslo em 1952. Na altura em que o “conheci”, ele tinha quarenta e cinco anos e na minha mente, permaneceu cristalizado nessa idade. Hoje vai a caminho dos setenta e isso faz-me impressão, ainda que tenha mantido a centelha da inquietação acesa ao longo de toda a sua produção. O Mundo de Sofia, publicado em 1991, permitiu-lhe deixar a carreira de docente e tornar-se escritor a tempo inteiro (ou pelo tempo que entendesse – sorte a dele!) tal o sucesso que alcançou.
A curiosidade acerca da sua obra foi imediata e, se nos anos seguintes não li todos os seus livros para adultos (ou jovens adultos, ou quaisquer que sejam os destinatários dos livros de Gaarder pois se o mistério e a magia forem feudos de certas idades, então qualquer “crescido” estará condenado a perder a curiosidade despertada pelas obras deste autor), andei lá perto.
O Mistério do Jogo das Paciências (1990) conseguiu surpreender-me de uma forma que eu não julgava possível após a entrada triunfante no universo de Gaarder. Uma história enigmática com um livro em miniatura, uma viagem pela Europa, um baralho de cartas sobreposto às semanas do ano, um anão, uma mãe ausente e o pequeno Hans Thomas. Revelar a sinopse esvazia o encanto, tal como com Maya, O Romance da Criação, livro de 1999 que é, de uma forma mais ou menos aberta, o passo seguinte d’O Mistério do Jogo das Paciências. Foi ele o responsável por ter procurado La Maja Desnuda, um quadro de Goya, no Prado. A Rapariga das Laranjas, O Vendedor de Histórias, O Enigma e o Espelho ou O Castelo dos Pirinéus, todos são atravessados por esta capacidade de os personagens (e o leitor, espera-se) se maravilharem com a realidade envolvente, tão simples e tão complexa, tão cheia e tão ausente, cruzando a imensidão do universo e a janela para o passado aberta pelo telescópio Hubble (A Rapariga das Laranjas), uma imaginação prolífica que espalha histórias por escritores sem talento (O Vendedor de Histórias), uma jovem que na noite de Natal se encontra doente no seu quarto e recebe a visita de um anjo (O Enigma e o Espelho) ou um reencontro de um homem com uma mulher no hotel onde muitos anos antes haviam vivido um grande amor (O Castelo dos Pirinéus). A Vida é Breve é, dentro do género ficcional, um livro que se destaca já que é composto pela transcrição de uma carta aparentemente escrita por Santo Agostinho, algo que o próprio Gaarder tentou confirmar junto do Vaticano, mas sem sucesso. O livro fica assim como a carta ficcionada que Santo Agostinho terá escrito à última mulher por quem se apaixonou antes de entrar na vida religiosa.
Aos vinte e três anos li o último livro de Jostein Gaarder. Muito tempo decorreu com outras leituras e alguma saudade, mas a verdade é que, tanto quanto sei, pouca produção ele libertou na última década. Nem sei se a vontade é mais forte do que a saudade (sim, estou a contradizer-me, mas é também isso o que faz de nós humanos) mas o que importa é o papel primordial que este autor teve na minha “carreira de leitor”. Se não fosse ele, outro ocuparia provavelmente o seu lugar como catalisador desta paixão pelas letras que desde a adolescência me acompanha. Ou talvez não, não sei. Mas com a leitura que através dos seus livros desenvolvi, cultivei também um princípio de olhar para a realidade e questioná-la, manipulá-la, brincar com ela e descobrir-me, libertar-me, tudo através de ferramentas tão simples e tão belas: ler, pensar e escrever.
PS: O trio final não é meu mas foi dito por Miguel Sousa Tavares, aquando da visita a uma escola promovida por Marcelo Rebelo de Sousa. Aplica-se ao texto em questão com a mesma verdade com que ele a empregou. Poder fazer uso de qualquer uma das três é um privilégio, um tesouro.