Até amanhã

O Cristiano tinha enlouquecido, há muito tempo atrás. Há mais de dez anos. Tinha sido professor de história, um homem com uma mente absolutamente fascinante. Agora, dormia na rua e tomava banho nas fontes.

Aos fins-de-semana andava pela vila toda com um carrinho de mão antigo, cheio de velhas dentaduras que ninguém sabia onde nem como as tinha conseguido. Andava como se não visse ninguém, gritando impropérios. Mas nos dias de semana, cumprindo a velha rotina esquecida que roçava timidamente a sua memória, tornava-se de novo professor. Ao ver um miúdo a passar por ele, agarrava-o pelo casaco, pelo braço ou pela mochila e obrigava-o a ouvir histórias da Guerra Colonial, de Viriato ou do Tratado de Tordesilhas. Às vezes, escondia-se atrás de alguma árvores ou de uma casa, esperando alguma criança a quem ensinar. Escondia-se porque tinha aprendido que os miúdos fugiam. Não entendia que tinham medo dele. Quando iam jogar à bola ou almoçar a casa, se o encontrassem no caminho fugiam assim que o vissem. Ele corria atrás deles, mas desistia rapidamente; eles eram sempre mais rápidos, nas suas pernas medrosas e energéticas, do que as pernas cansadas e velhas do Cristiano. Por isso, ele escondia-se. E se não tivesse a sorte de sequestrar público, falava sozinho. Contava-se a si próprio as histórias que estava cansado de saber.

Às 17 horas da tarde, certinhas, ia todos os dias para a tasca e bebia quantos copos de vinho tinto. Conseguia beber todos os que lhe oferecessem. Não tinha dinheiro, mas encontrava sempre alguém disposto a pagar um copito. Nessa altura, depois de dois ou três copos de vinho, sentava-se numa mesa a chorar e começava a contar histórias mais pessoais para a tasca inteira, com a sua voz de professor a ressoar nas paredes, como se estivesse a declamar poesia num coliseu importante.

Contava a história da Ti Jaquina, que pensava ter perdido o marido na guerra para depois descobrir que vivia com uma mulher na cidade; ou da Marta da mercearia, cujo marido tinha morrido no primeiro dia de trabalho; ou do João da Ti Carma, que tinha sido preso por tráfico de droga; ou de um dos gémeos Paredes que tinha ido fazer mergulho e não tinha voltado. As histórias eram intermináveis, e acabavam sempre com um “é a vida”, enquanto limpava uma lágrima fugidia, como se se tratasse de um ritual de homenagem.

Ate amanhaSe eu quisesse ouvir alguma dessas histórias, bastava sentar-me nalguma mesa escura, longe dele, camuflado, para as ouvir. Porque se ele me visse na tasca, contava sempre a mesma, como se me reconhecesse sem conhecer realmente. Primeiro, chamava-me, como se nunca me tivesse visto “Rapaz, anda lá aqui!”. Eu sentava-me na mesa dele, e ele perguntava “já conheces a história da Anabela Pereira?”. Eu dizia que não, por medo ou por hábito, e ele recontava a história.

Eu sabia-a de cor.

Anabela estava na sala, sentada no sofá, a olhar para o nada. Consta que foi onde o pai a viu pela última vez, antes de sair de casa. Tinha voltado da faculdade em Lisboa no dia anterior para passar o Verão na terra. Tinha saído com alguns amigos nessa noite, e tinha chegado só umas horas antes do pai a ver sentada no sofá. De repente levantou-se, foi até à janela, e sentou-se no parapeito. O irmão chegou à sala e viu-a. Tinha 9 anos e não percebeu bem, mas sentiu algo de errado. Chamou a mãe. Anabela olhou para ele, mas foi como se não o visse. Olhou para os seus pés, pendurados na janela e descalços. A mãe entrou na sala e viu-a. Viu-a a olhar para o irmão, e viu-a a olhar para os pés. Chamou-a. Ela não respondeu, como se aquele nome não fosse o dela. Depois olhou para a mãe como se não a reconhecesse, e voltou a olhar para os seus pés descalços. O coração de mãe disparou e ela correu para a janela, mas Anabela saltou. Anabela saltou, e morreu. A mãe suicidou-se também uns meses depois. Deixou o filho nos avós e tomou comprimidos. Todos sabiam que não tinham sido os comprimidos a matá-la. Todos sabiam que tinha sido desgosto.

“É a vida”, dizia ele limpando uma lágrima.

Eu acabava de beber o meu vinho. Já conhecia esta história de trás para a frente, até ao mais pequeno detalhe. Sabia que Anabela tinha morrido cinco minutos depois do pai sair de casa, de a ver sentada no sofá e de achar que era um dia normal. Sabia que a mãe tinha conseguido tocar-lhe no braço, mas sem tempo de o agarrar. Anabela morreu porque quis, ou talvez sem querer. Ninguém soube. Não houve carta, nem explicação.

Eu conhecia todas as histórias do Cristiano de cor. Mas conhecia essa história como nenhuma outra.

Que remédio.

Durante dias senti o cheiro dela em casa, e com os meus 9 anos não compreendi que não a voltaria a ver. Durante dias vi a minha mãe chorar pelos cantos, ou sem força para sair da cama. E lembro-me do dia em que fiquei com os meus avós, e que também não voltei a ver a minha mãe. Mal me lembro da minha irmã, do cheiro, nem da voz, nem do que gostava. Nem da minha mãe, da sua comida, do seu sorriso, dos seus abraços. Só me lembro do dia da morte delas, e de mais alguns, confusos, difusos, misturados, que nem sei se são reais.

Levanto-me sempre da mesa do Cristiano com um suspiro depois de o ouvir contar-me a história. Custa-me sempre ouvir, mas obrigo-me a recordar. Obrigo-me a saber, a lembrar, a honrar. Ele não sabe quem sou, mas associa-me àquela história. Despeço-me das pessoas da tasca, que ficam em silêncio depois de me verem a ouvir, de novo, a mesma história. Saio da tasca com um nó na garganta. E, mesmo que o Cristiano não compreenda nem me oiça, despeço-me sempre dele também.

“Até amanhã, pai.”

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