Já ao Lume com Hannibal

Quem é que, gostando de televisão, não tem a sua lista de séries que tem de seguir religiosamente, do primeiro ao último episódio, mas que, por vários motivos, não o conseguem fazer? Para mim, já é muito complicado decorar todos os horários e conseguir estar em frente da televisão à hora em que eles são emitidos, quanto mais analisa-los a todos para poder escrever uma crítica da série. Na semana passada, terminei de ver todos os novos episódios de Doctor Who e esta semana risquei mais uma serie da minha famosa lista de séries em atraso – a deliciosamente macabra Hannibal. Esta série desenvolve-se num reino de terror, onde os nossos piores medos assumem formas que qualquer mundo civilizado poderia ter. As cidades são retratadas com silhuetas sombrias de azul-escuro e vermelho sangue, com as nuvens a atravessarem o ecrã apressadamente, criando a sensação generalizada de se viver numa incessante inquietação. Existem dois tipos de personagens: os serial killers alucinados, que, normalmente, comunicam entre si através de códigos inscritos no modo como mutilam as suas vítimas, e as forças da lei, que vão vendo, constantemente, as suas faculdades mentais testadas, na sua luta contra estes assassinos. Contudo, neste reino de casos macabros, existe um rei, o nosso psiquiatra residente e extraordinário chef canibal Hannibal Lecter.

O criador desta versão televisiva do clássico literário, Bryan Fuller, voltou a transformar Hannibal num personagem temível, ao mesmo tempo que conseguiu resolver um dos maiores problemas que a interpretação desta criação de Thomas Harris teve na sua adaptação ao grande ecrã. Interpretado maioritariamente por Brian Cox e Anthony Hopkins, Hannibal foi representado como uma figura demoníaca, que necessitava de ser travada como se de um vilão de James Bond se tratasse. O louco doutor era, inicialmente, caracterizado como sendo uma personagem capaz de causar temores às pessoas com quem se cruzava (em especial, a versão interpretada por Brian Cox), mas nunca foi charmoso, nem demonstrou ter um lado humano, não sendo possível compreender o que o motivava a fazer os jogos mentais perturbadores que fazia. A visão desta personagem que Fuller e Mikkelsen criaram não apresenta estas problemáticas, já que Hannibal é, basicamente, um vampiro com gostos refinados, que luta com as outras personagens para, gradualmente, ir conquistando o controlo da narrativa em que todas as personagens se encontram presas. É charmoso, brilhante, com estilo e com um gosto refinado por arte, comida e vinho, mas mantendo, ao mesmo tempo, uma aura muito própria de quem é um estranho numa terra de estranhos. Tal como muitas pessoas egocêntricas, Hannibal tem o dom de desabafar as suas culpas em momentos em que ninguém espera que o faça, numa consciente manipulação de emoções, da qual pretende adquirir a simpatia de terceiros e, subtilmente, orquestrar as várias interacções sociais que necessita para atingir os seus objectivos. O Hannibal da série televisiva não se encontra enclausurado, como aconteceu com as versões de Cox, ou Anthony Hopkins, sendo mais um Tom Ripley que soube actualizar-se perante as tendências vividas na actual contemporaneidade, ao aceitar a ideia de que, de uma forma, ou de outra, todos estamos obcecados com a melhoria do nosso ser, enquanto actores culturais que somos. Hannibal seduz as suas vítimas, convidando-as para o seu “covil” e insinuando que qualquer pessoa, se seguir os seus passos, pode atingir o seu grau de sofisticação, ao mesmo tempo que cada convidado serve de refeição ao convidado seguinte. A noção de que o canibalismo de Hannibal é um estilo de vida que pretende retratar uma forma de protesto social não é um elemento narrativo novo, uma vez que sempre esteve presente tanto nos romances, como nos filmes, mas os esquemas montados por este Hannibal para alcançar as suas vítimas são elegantes, decadentes e imbuídas de uma carga satírica bem maior do que as outras versões desta personagem.

Apesar disso, Hannibal é, perturbadoramente, mais humano do que fora anteriormente, fazendo-nos quase acreditar nele, quando afirma que vê no profiler do FBI, Will Graham, um amigo, mesmo mantendo o objectivo de o enlouquecer, só para satisfazer uma curiosidade intelectual que tem. Will, que tal como Hannibal, teve a sua primeira aparição nos livro Red Dragon, tem, nesta versão televisiva, a primeira adaptação a conseguir captar na perfeição a sua genial capacidade de se colocar a 100% na mente dos assassinos, tal como os livros o apresentam. Esta extraordinária característica da personagem, que muitas vezes foi utilizada como uma forma de moldar a narrativa às necessidades dos argumentistas, é aqui apresentada através do seu modelo de trabalhar, segundo o qual, o profiler vai, progressivamente, incorporando em si os maneirismos dos assassinos e, desta forma, entrar nos seus estados mentais. No ecrã, estas alterações comportamentais de Will ganham vida recorrendo a movimentos quase sobrenaturais, em que as cores douradas são sobrepostas a um ecrã totalmente preto. Em cenas tanto belas, como viscerais, Will começa a dissociar-se da sociedade, para começar a operar numa lógica mais escura e distorcida, que funciona através dos simbolismos deixados por assassinos e vítimas de casos passados.

Esta extensa e inesperada ênfase dada ao fardo e à culpa que o talento de Will lhe traz, permitiram a Fuller contar uma história do serial killer que transcende o simples voeyrismo tão habitual neste género de séries. Quem segue Hannibal nunca aprecia as mortes como se fosse um assassino enclausurado num armário a viver uma fantasia distorcida através de uma série de televisão (como os vangloriados assassinatos realizados nos filmes) e as vítimas nunca têm a sua vulnerabilidade e humanidade negada. Este Hannibal televisivo é a versão mais rica e ambígua apresentada até à data, demonstrando uma extensa exploração de uma certa decadência social, que é perpetuada por cancros (figurativos e reais) que nos consomem diariamente. Mesmo assim, a série não deixa de ser pautada de momentos de esperança, na medida em que Will e os seus colegas continuam, diariamente, a lutar contra estes monstros da sociedade e contra o seu próprio sofrimento, até ao dia em que, inevitavelmente, chegará ao seu fim. Até lá, só me resta apressar e conseguir pôr em dia a segunda temporada de Hannibal, que já vai bem lançada no número de mortes.

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Comments 2
  1. Confesso que também sou seguidor fiel desta série Hannibal, não só pela estética bastante cuidada, cenários, decoração dos pratos (macabramente fantástica), como pela história e pela interpretação dos atores, especialmente do Hugh Dancy, que decerto foi escolhido para o papel depois de o terem visto em Adam, onde vestiu a pele de uma personagem com síndrome de Asperger. Vou seguindo o blog oficial hannibalblog do Tumblr da produção onde são revelados muitos segredos.

    1. Confesso que esta série tem tanto para dizer, desde os aspectos gráficos e de imagem, até às interpretações. Foi complicado escolher um ponto para onde me focar, mas depois existe uma segunda temporada soberba e depois já foi confirmada a terceira… tenho tempo para me concentrar nos restantes aspectos da série :). Vou dar uma olhadela no blog que me sugeres José, mas não quero descobrir segredos em demasia, para não ficar com spoilers.

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