O tema mais debatido nos últimos dias é, inevitavelmente, o bebé que foi deixado num contentor de lixo. É escabroso e macabro. Todos se apressaram a apontar o dedo à mãe, uma pessoa cruel que não teve amor pelo filho e que o descartou como se fosse uma coisa e não uma parte de si. Sem nada saberem dela nem da sua miserável condição.
Não se ouviu falar do pai. Uma criança não se faz sozinha, mas a mulher é sempre a culpada. Estas observações recordaram-me uns tempos negros e bem próximos em que as mulheres podiam ser condenadas por abortarem. Nunca havia culpa dos homens e ficava-se com a sensação de que em Portugal as mulheres engravidavam sozinhas. O pai não existe e nunca é chamado para o caso. Está isento de culpa.
Depois sabe-se que a mãe, uma jovem de pouco mais de 20 anos, vive em condições precárias, numa tenda e que ninguém sabia que estava grávida. Muito provavelmente nem ela se apercebeu e quando o descobriu viu-se perdida. Ainda mais perdida, sobretudo de si. Onde estão aqueles que auxiliam os que mais precisam? A tomar cafés e chocolates quentes dentro dos carros. Que fazer?
Acrescentam-se detalhes a tudo. O parto aconteceu em plena via pública e ela estava sozinha. Como foi possível? Aconteceu num local de muito movimento e passagem. Como é que ninguém viu nada? E se sangrasse até à morte? Olhava-se para o lado como se não estivesse a acontecer? Era mais um incómodo do que um ser humano? Pobre invisível…
Em profundo desespero livra-se do fardo pesado que tem entre mãos. Coloca-o num recipiente onde tanta coisa poderia acontecer. O que resultou desse acto foi um milagre. É descoberto por outra pessoa que vive nas mesmas e terríveis condições. Que ironia do destino: um sem abrigo descobre o filho duma sem abrigo. E aqui tudo muda. Uma miséria ainda mais miserável que a anterior.
O sem abrigo torna-se notado e tem nome. A comunicação social não pode perder um furo destes e o seu rosto e nome, Manuel Xavier, torna-se conhecido. A desgraça vende e comove a opinião pública que gosta de sangue. O pão e circo herdado do tempo dos Romanos. Um momento que tudo altera. Uma vida, nascida de fresco, que salva uma outra que está num limbo demoníaco. Altera, mas não muda a condição dele.
A mãe é encontrada e também tem nome: Sara. As suas feridas jamais serão saradas e é crucificada, novamente, em praça pública. Todos são excelentes pais e mães e nunca fariam nada de errado. Já não lhe bastará a culpa que sente pela miséria de vida que tem e ter sido forçada a ser ainda mais miserável? Não chegará? Saber que teve que deixar ir o seu filho não é dor suficiente?
Dizem que não estava sinalizada e não era vista nos últimos tempos. Lixo. É assim que se olha para estes invisíveis que são pessoas e não restos da sociedade. Cada um tem uma vida e uma história que nem sempre quer ser contada. Ela deve ter-se afastado para viver o seu pânico. Sozinha, grávida e a viver na rua. Que conjugação perfeita de tristeza. Como devem ter sido duros estes tempos!
Mais tarde, milagrosamente, a TVI recorda-se de a ter entrevistado, há meses, de ter ouvido os seus desejos e sonhos: quer estudar, ter uma vida normal e digna. Porém, não passou de uma mera entrevista em que nada mais foi feito. E já estava grávida, mas ninguém percebeu
Foi detida. Tem agora um tecto e comida. Do mal o menos. O Manuel espera por exames médicos que podem demorar um ano ou mais. É o problema geral do SNS. Até lá continua a viver do que vai aparecendo. O bebé felizmente está bem e provou que quer viver e mostrar um lado da sociedade que se teima em ignorar. Este enorme mediatismo incendeia as redes sociais e solta a revolta social.
A verdade solta-se como pedaços de espuma leve. Não foi o Manuel que encontrou o bebé, mas sim outros da mesma triste condição. As câmaras de vigilância provam que assim foi. Do Manuel já não se ouve falar. Voltou ao anonimato. A Sara já foi crucificada vezes sem conta.
Contam que se prostituía e apontam-lhe o dedo pois não podem atirar pedras. Ainda bem para ela. Contudo, é sempre a culpada. Ninguém vê o que é a prostituição, um mero negócio, uma transacção comercial. Há que sobreviver. E o cliente? Esse nunca é julgado nem mencionado. Só ela, a mulher que vende o seu corpo para prazer de outrém.
As associações que têm como mote o auxílio dos mais favorecidos afirmam que ela não era uma desconhecida. Não têm qualquer obrigação. Já dão o que podem, o seu tempo e vontade. O estado, esse vaidoso arrogante, continua a criar estas bolhas de indigência e a olhar para o lado. Há interesse em manter estas diferenças, estes estratos cada vez mais dolorosos?
A Sara deve estar morta por dentro. Do desconhecido passou para as luzes da ribalta e até na prisão é vista como estranha. Oxalá tenha uma chance de pegar no seu filho e o olhe nos olhos. Certamente que a relação privilegiada que tiveram nos últimos meses se voltará a ligar. Não imagino o que ela possa ter passado. A empatia ainda é um sentimento desconhecido para muitos.
Quem a culpa, sem o mínimo de compaixão ou empatia, deve ter uma vida confortável onde nada falta e sabe sempre o que fazer e qual a melhor atitude a tomar. São estes os juízes da sociedade que se escondem atrás de écrans de computadores e tudo sabem. Menos o que é a vida de quem passa as maiores e penosas necessidades.
Dizem que podia ter tido o parto num hospital, que podia ter entregue o filho para adopção, que havia isto e aquilo e que ela podia ter feito e que não o fez. Mais uma vez todos perfeitos num mundo virtual e de faz de conta. Quem nunca errou que se chegue à frente e dê a mão a quem precisa. Sabem lá quem é a Sara e a sua mágoa para sempre…
Tanto que haveria a dizer, mas quem sou eu para acrescentar mais migalhas a tão triste sina? Não vou escrever nenhuma carta à criança nem aos pais. Daqui a uns dias já ninguém se lembra do que aconteceu e voltam todos à vida do costume. É assim que somos. No momento fervemos, ameaçamos, prometemos, mas depois, quando a tempestade acalma, voltamos à tranquilidade do porto seguro e seguimos como se nada tivesse acontecido.
O bebé, o Salvador, nome dado pela equipa que o resgatou, é um lutador, um pequeno herói que tem uma vida pela frente e que deve ser plena. Já muitos mostraram interesse em ficar com o menino. Outros tantos que precisam de lares continuam ignorados. É a fama efémera. Ou se querem sentir bem pelo “perdão dos pecados” ou o subsídio que o acompanha fala mais alto.
A Sara é apenas uma invisível ma multidão. Tantas Saras que existem assim como Manueis. As ruas da cidade grande enchem-se de quem já perdeu a esperança e as casas. São tantas histórias que viveram, tantas vidas que pulsam e tanta indiferença que a sociedade continua a mostrar.
Julgar é sempre tão fácil, mas ajudar é bem complexo. E tantas pessoas que a maltratam, sendo grande parte mulheres, são capazes de fazer de conta que não percebem o que se passa à sua volta. Fecham os olhos e continuam na sua torre de cristal onde o príncipe encantado um dia chega, beija a princesa adormecida, casam e são felizes para sempre.