Longe vão os tempos em que a sobrevivência advinha da acção.
Nasci em 1979. Ao longo de toda a minha infância e adolescência tive oportunidade de ver a história da humanidade a ser criada. Foi maioritariamente atrás do visor de uma televisão, mas foi.
Assisti a eventos como a explosão da Central de Chernobyl, o Massacre da Praça de Tiannanmen, o final da Guerra Fria, a Queda do Muro de Berlim e todos os eventos que a precederam e sucederam, o Golpe de Agosto de ’91 na Rússia, a Guerra dos Balcãs e a Guerra do Afeganistão, as Intifadas, a Guerra do Golfo, a Queda das Ditaduras da segunda metade do século XX no Brasil, na África do Sul, na Espanha e na América do Sul, a Guerra das Falkland, o Genocídio no Ruanda, assim como coexisti neste planeta com figuras como Nelson Mandela, Stephen Hawking, Yitzhak Rabin, Benazir Bhutto, Mikhail Gorbachev e Boris Ieltsin, Madre Teresa de Calcutá, o Homem do Tanque, e tantas outras personagens significativas.
Transitei de século, assistindo já neste século XXI ao derradeiro ponto final da XX Guerra Mundial, quando os americanos por sua vez invadem o Afeganistão, país apelidado de cemitério de exércitos, e numa reviravolta do destino finalmente se apercebem que o terrorismo de que são alvo é o resultado da sua política externa do final da Guerra Fria. E perdem (por mais que digam que venceram, nunca conseguiram verdadeiramente dominar os afegãos).
Finalmente assisti à questão e urgência climática tornar-se um tema social proeminente, apesar de alguma latência e resistência por parte de alguns extremistas sociais que continuam a achar que porque faz frio ocasionalmente, a temperatura média anual do planeta não está a subir.
Assisti ao fenómeno da recorrência das crises económicas, que, resultado da ruptura dos sistemas económicos, que frisam ainda mais a separação entre ricos e pobres, continuam a gerar mais preocupação social que a proximidade de ruptura dos sistemas ecológicos.
Assisti ao wokismo a ganhar forma e dominar o panorama social online e depois real, galopando às costas das redes sociais e dos seus estimados, inconstantes e absurdos “padrões da comunidade”, trendenciando (esta criei agorinha mesmo) o politicamente correcto, a estupidez e o extremismo.
Assisti ao fenómeno “teoria da conspiração”, que era apenas um tema simpático de discutir em jantares com amigos, que ilustrava de forma colorida toda e qualquer conversa sobre geopolítica tornar-se transversal a todo e qualquer tema, fazendo sair da caixa de pandora coisas como as fake news, esse gaslighting à escala global, e o medo inconsciente e despropositado, tornando-as instrumentos de condicionamento de massas, de manipulação de intenções e propósitos.
Nasci em 1979. Assisti à história da humanidade a acontecer, primeiramente através do visor de um televisor, depois através do monitor de um computador e mais recentemente através de um telemóvel. Contudo, agora não a assisto. Faço intrinsecamente parte dela, porque finalmente acordei e assumi o meu papel no mundo.
Por razões socioculturais inerentes às minhas origens, a acção em sociedade – qualquer que ela seja – é muito mal-entendida, quase se assumindo que temos de nos “fazer de mortos” perante toda e qualquer coisa que surja, e talvez – apenas talvez – passemos incólumes, nem bem nem mal, mas acima de tudo invisíveis.
E esta é a atitude mais comum à esmagadora maioria dos elementos da nossa sociedade. Seguem cegamente as regras estabelecidas, aquilo que a maioria decidir faz-se, diz-se, age-se, pensa-se, e questiona-se o mínimo possível. Se possível é deitar no chão e deixar acontecer o que quer que tenha de acontecer. O que interessa é sobreviver social e economicamente. Levar uma boa vida.
Longe vão os tempos em que a sobrevivência advinha da acção.
Interessante como aqui há cerca de vinte anos um filme blockbuster parabolizou isto, trendizou (olha outra fresquinha) toda uma subcultura e uma verdade inerente ao sistema sociopolítico em voga no mundo, e o que é que uma esmagadora maioria da população viu? O perigo da AI, das máquinas tomarem conta do mundo, da possibilidade da guerra contra as máquinas, a possibilidade de as máquinas ganharem a guerra e escravizarem os humanos. Muito poucos viram que todo o filme era uma parábola para o facto de que maioria da humanidade é já escrava do sistema, essa máquina não literal, que através de vícios cuidadosamente criados e implementados (o dinheiro, o luxo, a frivolidade, as redes sociais, o sentimento de posse), mantém de joelhos, completamente subjugada, toda a humanidade. E que os poucos acordados, os libertos das correntes, são tratados como párias, os “outros”, os loucos.
O problema maior é que entendo que esta “consciência social” que advém da observação do mundo, esta quase-necessidade de tomar uma posição e ser interventivo na realidade, deveria ser transversal a todos os cidadãos.
E tenho ouvido todo o tipo de escusas para este acordar. Desde a recusa em assumir uma posição – qualquer que ela seja – até à clássica desculpa da fragilidade social (económica, educacional, eu sei lá) que impede de se “dar ao luxo” de assumir o seu lugar como cidadão socialmente válido.
Para uma esmagadora maioria, comparecer junto da urna de voto nas eleições é muito mais do que o necessário, como se os partidos políticos vigentes (qualquer um, é só escolher) tivessem competência, qualificações, isenção, honestidade e integridade suficiente para assumir uma posição governativa qualificada e verdadeiramente interventiva. É como se a população verdadeiramente achasse que eles são verdadeiramente preocupados com as pessoas que governam.
Devemos votar, entenda-se. É imperativo. Mas também o é exigirmos de quem votamos a integridade, honestidade, cuidado, competência e qualificações que são necessárias ao bem comum.
Platão disse algo como “uma das penalizações inerentes à recusa de participar na política é que se acaba a ser governado pelos nossos inferiores” (tradução livre, dado que não sei traduzir grego clássico), e esta palavra – governado – é tão por demais importante, dado que abrange muito mais do que aquilo que comummente julgamos.
E deveríamos acordar e ver.
No meu caso, acordei. Tarde, mas acordei. Levei o meu tempo a somatizar todos os acontecimentos a que assisti de bancada. Compreendi as forças envolvidas. Entendi o caminho que o mundo levou. Fiz os meus julgamentos. Aprendi o que pude aprender e, finalmente, deixei de me fazer de morto. Acordei socialmente.
Se ouvi muita crítica? Imensa. Se fui posto de parte? Imensas vezes. Se ainda hoje a ouço e sou posto de parte? Sem dúvida. É inerente a qualquer tomada de posição, mas aceito os custos disso. Entendo-os como os custos de ter os olhos abertos. E dói mais quando quem te faz pagar te é próximo, mas lá está – faz parte do acordar. Parte da dor de ter os olhos abertos.
E este artigo não é de todo sobre mim e a minha experiência.
É sobre todos nós.
Longe vão os tempos em que a sobrevivência advinha da acção.
Ainda vamos a tempo.