Horas com sabor de lúcia-lima

Lembram-se de aprender a ver as horas?

Recordei-me desse preciso momento enquanto conversava com o meu filho. Ele, um jovem próximo da maioridade, fã de smart watches, comenta que os putos (leia-se os mais novos), já quase não sabem ver as horas num relógio de ponteiros. Agora, para medir o tempo, recorre-se basicamente aos digitais e aos telemóveis, pelo que os relógios de ponteiros não tardarão a ser uma peça de antiguidade, como são hoje os relógios de bolso.  Guardo um em prata que era do meu avô, nascido em 1920. Está guardado num pequeno saco de pano, e na parte exterior tem um tigre gravado em relevo, pendurado numa corrente que o prendia ao bolso. Tempos de charme.

Se bem que ainda há quem considere os clássicos, ou mesmo quem colecione relógios dos mais variados estilos. Alguns são usados como joias, como se fossem uma pulseira valiosa, em dias de festa. E há os mais corriqueiros, geralmente conectados a gerações adultas, tendencialmente maduras. Na baixa lisboeta existem ainda relojoeiros que trabalham essas máquinas de precisão, usando-se de um óculo de aumento para conseguirem destrinçar as peças diminutas onde reside o tempo. Paro sempre para espreitar a montra e procuro sempre um velhote castiço que por lá ainda vai permanecendo.

Reparo muito nos relógios alheios, quase tanto como nos sapatos. Acho que ambos poderão apresentar a pessoa de forma instantânea, pelo menos no que toca ao bom gosto. E adoro os relógios das torres da igreja e das praças centrais nos vilarejos, habitualmente manifestando tradições e formas de trabalhar os elementos e os materiais típicos da terra.

O meu encanto distribui-se também pelos relógios de sol. Foi o meu pai, em infantis dias de praia, que me ensinou a ler as horas, virando o ponteiro (uma cana ou uma planta) a norte, e atentando na sombra indicava as horas.

E a beleza que se estende às clepsidras (relógios de água) e às ampulhetas (relógios de areia), ambas baseadas no princípio da força da gravidade? Mecânica simbólica cheia de poesia.

A evolução de todos estes mecanismos constitui uma história a quem saiba contá-la devidamente. Eu só poderei contar a minha.

Era menina e isto passou-se antes de ir para o infantário, aos 4 anos. A minha tia-avó e madrinha ficara viúva quando eu tinha pouco mais do que um mês. Acharam os crescidos que, ficar com ela, ao invés de ir para uma creche ou infantário, seria o melhor para ambas. E assim foi, até aos 5 anos ela foi também minha educadora de infância.

Passávamos a tarde a jogar às cartas, e ela, pacientemente, ia-me ensinando cada jogo, o valor das cartas, ainda que ambas não soubéssemos ler e eu não dominasse ainda os números com desenvoltura. Chegada a fome vespertina, dizia-me ela:

Vai lá ver as horas à cozinha para ver se já é hora do lanche. (sempre me desafiou a crescer…)

 – Mas, Nhinhi (como lhe chamava), eu não sei ver as horas.

Fazes assim: vês em que número está o ponteiro grande e também onde está o ponteiro pequeno.

E eu, atravessava o corredor que levava da sala à cozinha e vinha com notícias:

O maior está no 12 e o menor no 4.

Então são 4 horas, vou fazer o chá de lúcia-lima e pôr a mesa.

Assim fui aprendendo. A minha mãe, ao saber disto, prometeu que me dava um relógio quando eu aprendesse as horas. E eu, de bom grado ia corredor fora até dominar as horas, as meias-horas, os quartos-de-hora e os minutos.

Namorava então um relógio que vivia na montra da ourivesaria da Praça Paiva Couceiro. Tinha um Mickey no centro dos ponteiros e fazia as minhas delícias, dando-me ímpeto e vontade de aprender o mais breve possível.

Nunca o tive. Ela achou que era muito infantil (eu tinha 4 anos!) e resolveu comprar-me um regular, liso, sem destaque algum, que achou mais adequado.

Sei agora que as compras nesse tempo tinham um prazo alargado de uso, e, portanto, provavelmente terá pensado que aos 10 já não lhe daria uso.

A mágoa, de não ter tido aquele relógio que tanto queria, sobreviveu a todo este tempo. Assim como as memórias das inúmeras vezes que corri, premiadas com um chá de lúcia-lima e um bolo de erva, feito pela mais doce criatura.

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