Às vezes penso que felicidade não é um nome mas um verbo. Um verbo que se conjuga muitas vezes no passado. No presente parece que não temos capacidade de a olhar. Será que é tão grande que só a conseguimos ver à distância? Temos, a maioria de nós, vários momentos que, no futuro, nos vêm trazer boas memórias, dos quais sentimos saudades, aquela nostalgia que se apega às fotografias que tiramos. Aliás, a tendência da câmara fotográfica é registar os bons momentos, nessa tentativa de que se perpetuem no tempo, trazendo-os de alguma forma para o presente do olhar de cada vez que as vê, mas sempre com a distância temporal interposta entre o o que vê e o que é visto. É preciso o presente para reconhecer o bem-estar no passado?
Outras vezes conjuga-se no futuro, naquele projecto mental delineado, projecto esse que muda à medida que avançamos: quando eu tiver um carro, quando eu tiver aquele trabalho, a minha casa, um cão, uma família, aquelas férias onde as fotografias serão mais que muitas… Depois de termos o tal carro, agarramos no desejo antigo e deitamos fora, já não serve, prescreveu. Bem, na verdade não nos desfazemos de um desejo, antes o substituímos por outro, ligeiramente diferente (parece): agora queremos um carro um bocadinho melhor, ou quem sabe um carro novo, em segunda mão já não preenche os requisitos; o mesmo com a casa, começa-se com o T0 ou T1 e depois a casa deve ir crescendo, adaptando-se à nova família, aquela que se desejou também. E assim vamos andando, como se os desejos fossem buracos no caminho que temos de encher com alguma matéria palpável, para andarmos mais seguros nesse chão.
O pior é que tapado um buraco, ganhamos tempo para olhar para o lado e logo vemos outro buraco, a precisar de ser tapado também. Agora é que é! Este é que precisava mesmo de ser tapado! Este é que vai fazer diferença. E assim vamos, sempre a trincar a cenoura que levamos pendurada um palmo à frente da nossa cabeça, sem nos apercebermos que ela avança porque nós avançamos também.
Uns são capazes de olhar para traz, ao longo do trajecto, e reconhecer num chão agora plano o lugar dos buracos outrora tapados. Lembram-se que aquela superfície lisa já foi irregular e ali estão entaipadas algumas vitórias. Parece uma atitude sábia de reconhecimento, mas ainda assim voltamos ao passado, como se precisássemos da validação do que já fizemos, do que já produzimos, do que já conquistámos. Todos estes termos parecem remeter-nos para uma insuficiência essencial, que só se resolve por meio de fazeres, afazeres e aquisições várias. Talvez fosse mais apropriado ao homem de hoje chamar-se Fazer Humano do que Ser Humano, como já vi sugerido, termo mais adequado às escalas que nos medem por objectivos, conquistas, currículos, salários, números e histórico.
Será a felicidade essa construção utópica que serve sobretudo para nos pôr em marcha atrás da cenoura? Essa ideia de que ela vem no fim, depois de tapados os buracos do caminho, começa logo com os contos e histórias que ouvimos na infância: só depois de tapados todos os buracos podemos descansar e, segundo a fábula, ser felizes. Mas também sabemos que, quando nos damos esse descanso, acaba a história. “E viveram felizes para sempre” costuma ser o último parágrafo do conto, dando a entender que já nada há a dizer sobre aquelas vidas. Assim crescemos com a ideia bem inculcada que depois de uma vida de conquistas e buracos tapados, havemos de lá chegar. Mas lá à frente, bem lá à frente, depois, após, finalmente.
Mas a felicidade, seja ela nome ou verbo, não pode estar fora. Está dentro. Nem a maior e mais apurada lista de desejos nos traz a felicidade, traz-nos coisas boas e agradáveis, mas isso não é felicidade, pois não? Todos conhecemos pessoas que têm tudo o que está na nossa lista de desejos e não são felizes. Terão feito mal a sua própria lista? E outras que parecem destinadas a uma tristeza inevitável pelas circunstâncias da vida e são, afinal, desenhadas para ser felizes. Mesmo quando estão tristes. Sim, a felicidade não se resume a estar sempre alegre! É antes um estado de contentamento por cá andar, mesmo quando a vida vai ao contrário.
Há um compromisso em ser feliz? Uma vontade mais forte que as rasteiras? Ser feliz não tem nada a ver com nunca estar triste, é uma coisa maior que engloba alegrias e tristezas, é um estado interno que há-de ser possível encontrar mesmo com todos os buracos por tapar. É uma espécie de formatação do espírito? Uma forma onde se deita o barro ou um terreno que tem de ser trabalhado e remexido e alimentado? É uma escolha? Uma capacidade? É uma ideia perfeitamente utópica na qual só românticos ingénuos e incautos acreditam?
É verbo. E só deveria ser possível conjugá-lo no presente.