Há várias formas de articular este preceito, durante tanto tempo tão caro e necessário:
“Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.”
“Não firas outro de modo que não gostasses de ser ferido.”
“Trata o(s) outro(s) como gostarias de ser tratado.”
Todos já teremos proferido, numa ou outra circunstância, uma observação equiparada e compreendemos o sentido que aporta, chamando a atenção para o facto de devermos tratar o outro com a mesma nobreza de carácter com que consideramos merecer ser tratados, criando como que um espelho reflector que nos condiciona a conduta, tentando, pelo menos, iluminar os nossos limites morais. É um bom princípio, mas não basta. É um bom princípio quando estamos a ensinar condutas comportamentais a crianças, tornando mais claro o porquê de não se fazer determinada coisa, ou o dever de se fazer outra tal coisa, mas perpetuar esta lógica na idade adulta é convidar à infantilidade ética, que me parece ser o lugar comum de hoje. Não tenho dúvidas de que é o melhor princípio, mas é isso mesmo, um princípio, que demanda continuidade.
Ficar ali, naquele princípio inalterado, é mantermo-nos num lugar de superioridade e até alguma arrogância, como se soubéssemos perfeitamente o que o Outro quer ou não quer, recorrendo aos nossos critérios, às nossas convicções, às nossas medidas, para avaliar o que será bom para o Outro, permitindo-nos permanecer sentados no mesmo lugar egocêntrico. Acreditamos que, por estarmos aptos a julgar sobre a nossa vida e conduta individual, somos capazes de aferir o que é melhor para o Outro. Não somos.
Devemos sair do nosso eixo e dispormo-nos a fazer o caminho até ao Outro e só aí avaliar o que poderá ser do seu agrado, do seu interesse. E, ainda assim, convençamo-nos de que vamos falhar. No entanto, esta predisposição, este lançar-se ao caminho abre a porta do diálogo, da empatia e do respeito. O Respeito fundado precisamente no acolhimento da diferença: é fácil acolher o igual, o trajecto necessário prende-se em acolher a diversidade, mesmo que não a compreendamos. A compreensão nem sempre é possível e – tumultem-se os lógicos – nem sempre é necessária. A nossa razão não é suprema, dela não se devem tirar ilações absolutas, desde logo a minha razão vale tanto como a razão do outro, sendo esta uma premissa difícil de integrar quando a razão do outro em tudo diverge da minha. O respeito pode ser ter de aceitar como válida uma realidade que não encaixa nos nossos critérios.
A globalização torna esta questão cada vez mais premente. O alcance rápido a todos os povos traz a prepotência dos mais fortes mais visível e sonora, tomando o pendor paternalista da política internacional papel de destaque. Os Estados Unidos souberam muito bem o que foi melhor para o Iraque e para o Vietname; os Ingleses souberam o que foi melhor para a Índia; a União Europeia… Bom, não faltam exemplos de entidades mais munidas de razão que outras.
É claro que concordamos com muitas coisas que possam ter sido feitas; é claro que me parece bem alguém intervir contra a pena de morte, contra a violação de mulheres, contra a exploração infantil, mas este meu parecer é formado num universo onde os princípios da civilização ocidental são aceites. A temática dos Direitos Humanos é pantanosa também por isto: como podemos impor algo que se revela evidente e urgente para nós, mas não o é universalmente? Por vezes penso que nos foi, a nós, ocidentais, permitido fazer um caminho de atrocidades, de vergonhas, de tirania, e que, por termos chegado antes a algum lado (será que chegámos?), nos sentimos no direito e dever de forçar os outros ao atalho.
A Memória talvez seja mais parcamente distribuída que a dita razão.
Sabemos só o que achamos que é melhor para o outro – não o que efectivamente é melhor – sem nos dispormos a fazer o caminho até lá. Na diferença. Na alteridade que pode ser radical, na medida em que traz conceitos absolutamente estranhos e incompreensíveis à luz da nossa construção moral. O trabalho seria mais fácil se tivéssemos de lidar com escalas variadas dos valores que já conhecemos, encaixando as várias gradações na teia que temos vindo a construir, mas o que se pede é mais profundo: não é visitar os valores do outro, mas a teia onde os formou.
Invoco Levinas, pensador lituano, que clamou a instauração de uma Ética da Alteridade. Invoco-o porque creio ser esta a única à altura dos nossos dias. É a única dimensão verdadeiramente ética, que começa, desde logo, com a nivelação dos intervenientes. Pressupõe que todas as partes envolvidas têm a mesma relevância, não estando nenhuma mais apta a julgar que a outra – para o filósofo, o outro prevalece sobre o eu, mas não arriscamos tanto.
Presumirmos o que será melhor para o outro partindo do exemplo que tomamos de nós próprios é boa semente para a tirania.
Faz ao outro aquilo que tu crês que Ele gostaria que lhe fizessem, não o que esperas que te façam na mesma situação. Esse caminho, até se chegar à ideia do que o outro poderia beneficiar, será já progresso, exigindo que nos dispamos das nossas convicções e verdades para irmos ao outro lado ver. A Regra de Ouro vale todos os quilates que tem, mas não chega.