No dia em que os Chicago Bulls foram tricampeões, cortei os pulsos pela primeira vez. Não por causa disso, mas porque ela me abandonara.
Derrotado, sentei-me no chão frio da casa de banho e, encostado à parede, deixei verter a angústia. A vida derramada tinha a mesma cor cintilante dos Bulls. A ironia cruel. Enquanto eu a desperdiçava, Jordan garantia-a em forma de eternidade. A arte do último golpe. Ele, nos Phoenix Suns, eu, na culpa. Jordan e eu numa sintonia perfeita, a explosão enrubescida. Aquela mancha vermelha foi a última coisa que vi antes de me afundar na escuridão.
Quando despertei do coma, percebi como ela, a vida, a calamitosa vida me fizera descer a lugares tão assustadores como improváveis. O plano falhado, o choque a transformar-se em pânico. A raiva percorreu-me o corpo quando me descobri ainda vivo. Quem me encontrou mergulhado em sangue julgou que me salvaria, quando, na verdade, nada mais fez do que prolongar o meu sofrimento, adiar-me a conclusão do plano. Alguém que, à maneira de Michael Jordan, salva a equipa com um triplo no último lançamento dos segundos finais. Lamentavelmente, foi isso que me aconteceu. A ironia cruel, a má sorte.
No último dia de verão, tive alta clínica. Foi então que tomei o maior e mais desesperado acto de coragem: não deixar que a má sorte me voltasse a castigar. A urgência de matar uma vida já morta. A vida tornara-se tirana para mim e isso consumia a minha intenção de continuar com o tormento. E eu pretendia livrar-me de mim, da minha própria dor, juntar-nos na eternidade. Encontrava-me destruído, mas determinado. Ansiava libertar-me de um inimigo interior que avançava contra mim.
Eram onze da noite quando, saído da clínica, cruzei as ruas onde, meses antes, tudo se passara, onde todo o meu mundo se destruíra, o local onde nos separáramos fisicamente. Os becos esconsos, o cheiro a podridão, os ataques de pânico a rondarem. Digo-vos apenas que os olhos verdes dela foram a causa de tudo. Garanto-vos que ela não sofreu, deixei-lhe apenas o sangue da jugular correr, lentamente, todo. Espero que me percebam. Sei agora que me sinto culpado.
É sobre isso que vos quero falar uma última vez, sobre as razões que me levaram a querer livrar-me de mim e da vida, as razões que me levaram a corrigir a rejeição de Amy. Não quero que sintam pena, quero apenas a vossa compreensão. O que pode um homem rejeitado fazer com esta dor retorcida? Que razões podem levar uma mulher ambiciosa a rejeitar um advogado de sucesso? De que maneira um advogado famoso pode lidar com o mediatismo de uma rejeição? O que se passou ficará para sempre escondido nesse período obscuro da minha existência pouco salubre. Foi durante esse período que ocorreram os acontecimentos que me trouxeram até aqui. Não me peçam para, neste momento, vasculhar esses meus fantasmas.
Esperei duas longas semanas desde a alta clínica até chegar ao ponto onde me encontro novamente: sentado no chão de uma casa de banho. Desta vez o plano de nos voltar a juntar na eternidade, um último golpe, não falhará. Conto com a vossa complacência.
Terei, entretanto, alguns minutos para continuar a desabafar convosco. Talvez precise do vosso perdão. Peço que não me abandonem agora e que me oiçam, que me acompanhem até à minha última gota. Mas, principalmente, que fiquem em silêncio e que respeitem a minha vontade, não dando o alerta, tal como me sucedeu da última vez, que evitem ser o despoletar de um novo lançamento triplo, o salvador de último segundo, de um último golpe.
Não percamos mais tempo, porque ele já começou a esvair-se. A cor dos Bulls a inundar mais uma vez o chão. Daqui a instantes serei como uma garrafa de vinho entornada, vazio. A dor cessará por completo, a tranquilidade invadir-me-á em menos de nada. Será a única forma de nos voltarmos a juntar, eu e Amy, sem rejeições, para sempre. A finalização do plano.
Tornar-me-ei líquido derramado. Converter-me-ei em qualquer coisa melhor do que isto.
Em vez disto.