Jordânia: shukraan!

… e ao quinto dia chegámos ao deserto. Conduzidos numa carrinha caixa aberta desde a Wadi Rum (a vila) até ao acampamento, Um Chá no Deserto esperava por nós bem como o Thorsten, um alemão que viajava sozinho (a namorada não gostava de calor) e que havia conquistado o seu quinhão de liberdade ao trocar cinco semanas de férias por dez por cento de vencimento (bela ideia…).

O acampamento acomodava-se entre um pequeno afloramento rochoso a nascente e um rochedo que cedo espalhava a sua sombra a poente. A desilusão que me invadiu quando a Bianca – a holandesa da agência que nos levou – disse que não conseguiríamos ver o pôr-do-sol nesta altura do ano logo se dissipou com a visão que tivemos ao contornar a “pequena rocha que nos servia de encosto” e, sugeridos por ela, pudemos ver o pôr-do-sol a nascente.

Julgo que todos pasmámos com a vista que se nos revelou… a luz reflectida na rocha ao fundo daquele postal, o silêncio embalando a sombra vespertina, o cansaço que pedia aquele interlúdio… senti os minutos daquela janela de vida acomodarem-se em mim para sempre.

Tivemos a sorte de viver o momento certo no lugar certo. Espalhámo-nos naturalmente: a Marta, sentada na rocha, foi quem ficou mais a norte; a Filipa logo a seguir; a Cláudia, na areia, estava à frente; o David posicionou-se a poente e eu sentei-me a sul, O Sul de Erice, esse lugar onírico onde dormem os sonhos que perseguimos… naquele deserto, cada um de nós no seu momento dispensou as palavras para respeitar o silêncio do outro. Por isso, nos espalhámos…

Àquela hora, a areia e as rochas vestiram tonalidades de laranja, rosa, amarelo-torrado ou de vermelho, como se o lugar ganhasse vida ao pôr-do-sol.

Tínhamos vindo de Petra, que eu julgara imbatível. A referência que levava da cidade esculpida na rocha trazia-a de Indiana Jones e a Grande Cruzada, quando o vi sentado no chão da sala da casa dos meus pais muito anos antes. Isto é cenário – pensei na altura – é perfeito demais para ser real… mas era real e de uma realidade que superou a ficção: Maravilha do Mundo Moderno, onde quaisquer palavras que eu procurasse para descrever o desfiladeiro, as esculturas, a dimensão do espaço ou as vias que me assombravam e desafiavam as vertigens, esconder-se-iam de vergonha por não conseguirem reflectir a imponência e a beleza daquele mítico espaço de outrora. O abismo e a perfeição tão próximos… VÃO!

A inveja que senti dos beduínos nas suas tendas onde vendem água, chá e oferecem simpatia levou-me a pensar no rumo que aceito. Ver em silêncio a vida passar com tal naturalidade afligiu-me, mas compreendi, pois só em silêncio é possível sentir as paisagens deslumbrantes em frente das quais posicionavam os sofás, os toldos e os artigos que dão forma aos lares que os acolhiam, onde nos acolhiam. You’re welcome foi a reposta que mais ouvimos, quando dizíamos vir de Portugal.

Será isto viver? Custa-me afastar do padrão pelo qual avaliamos a nossa vida para aceitar esta forma de existência mais… contemplativa… parecem felizes.

Ir a Petra nunca foi o sonho de uma vida ou um item numa lista de desejos: calhou, como tantas vezes acontece com as coisas boas da vida. Cabe-nos aproveitar. Seria mais bonito, poético até, dizer que foi o karma, o destino ou que só podia ter sido assim. Mentira: podia ter sido de muitas outras maneiras, mas foi assim que aconteceu.

A aventura começara em Amã, uma cidade feia de gente simpática e ruinas que marcavam a diferença (eu viria a perceber que a Jordânia é muito isto: “caixotes” mal acabados fazendo de casas, espalhados ao acaso pelas encostas, que de tão feios conseguem formar bonitos postais e gente aberta e de uma simpatia que me surpreendeu). O pôr-do-sol na cidadela constituiu o melhor prenúncio dos que lhe seguiriam.

Destilámos nesse dia, mas destilámos mais no dia seguinte ao visitar as ruinas de Jerash, cidade que confirmou a ideia formada em Amã de que nesta terra, as construções em ruinas são mais bonitas do que as que abrigam a gente boa que nos acolhe. Jerash foi impressionante tal como o foi o Castelo de Aljoun, que visitámos no regresso à capital.

No dia seguinte, fomos actores num road movie com direito a paragem em Karak para mais um castelo: o dia terminaria com a chegada a Wadi Musa, junto a Petra, onde nos demorámos dia e meio. Subimos ao verdadeiro altar do Sacrifício… uma vez mais, a vida na paz da vertigem, no silêncio. Eu que tenho vertigens desejei viver nesta paz. Ao partir, viro-me, já no desfiladeiro, para olhar O Tesouro uma última vez. É outro tesouro que vejo neste quinto dia, outra luz que incide no palácio escultural… voltámos ao sítio onde fomos felizes para constatar que ele nunca é igual. Se fosse, não valeria a pena voltar a olhar o mar, regressar à noite ao lar ou celebrar a vida num jantar.

O sexto dia começou no ar, a ver o sol espreitar enquanto subíamos com ele no balão sobre o deserto. Como o mundo fica diferente, quando observado sob uma outra perspectiva… ainda que esse mundo seja um deserto.

Calcorreámos planícies, rochedos, desfiladeiros e pontes, almoçámos à sombra e trepámos dunas para fechar o dia acompanhados por outro assombroso crepúsculo, agora a poente…  mas o meu momento já passara: O Deserto dos Tártaros cristalizara-se no dia anterior embora a paz que nos invadiu tenha sido a mesma. Vimos juntos o nascer da noite. O paraíso deve ser tão isto…

O sol esconde-se de forma lenta e veloz: demora a cair, mas quando se esconde, parte num ápice para trás do horizonte… porque será que esta vista nos enche sempre?

Os mares que visitámos marcam aqui presença somente para evitar a censura: os corais e os peixes no Mar Vermelho são moderadamente bonitos; as praias parecem o quintal das traseiras de um anexo abandonado e Aqaba é uma cidade moderna com gente atrasada (finalmente, um “cheirinho” do conservadorismo islâmico). Ponto alto: reencontrámos o Thorsten ao final da tarde.

No Mar Morto, não vamos ao fundo. E é tudo. O que restou do oitavo dia foi passado no resort, a estância mais luxuosa onde alguma vez pus o cú! A tarde junto à piscina ora a mergulhar, ora a conversar, ora a ler Anna Karenina, que me acompanhava ia para três meses, soube-me pela vida!

A Jordânia encantou-me: a gente, a condução caótica, a inversão de marcha nas autoestradas, os espelhos traseiros nas carrinhas; o paupérrimo inglês incapaz de apagar a simpatia, a fraca pressão da água, o lixo nas ruas, a construção desordenada, a poeira constante, o clima quente e a comida.

Nada fiz para que esta viagem fosse possível: paguei e vim. A Filipa, a Cláudia, a Marta e o David foram os responsáveis por eu ter vivido o que vivi: estou-lhes imensamente grato. Dificilmente teria vindo parar à Jordânia por minha iniciativa, mas findo este périplo, só posso dizer o que disse de Petra: VÃO!

E regresso ao deserto e ao primeiro pôr-do-sol. Foi esta paisagem que imaginei quando li O Deserto dos Tártaros… porque os desertos não são todos iguais…e foi para este que “viajei” há três anos. Agora que entrei na história, não sei se estou do lado da paisagem dos que esperam, se dos que “invadem”.

A Cláudia havia dito, quando parámos para um café de sonho no miradouro com vista sobre a albufeira do Mujib, que ”a vida é muito boa por nos proporcionar momentos como este” (mal sabia eu que seria este o rio que iriamos subir a nado, agarrados a cordas ou trepando pelos calhaus na manhã do nono dia, o da nossa partida). Estávamos no terceiro dia e seguíamos para Petra pela King’s Highway. Mais tarde, chegados ao deserto com Petra no coração, a Filipa reforçou: ”somos uns sortudos por ter a possibilidade de vivenciar isto”. Eu, que gosto de escrever, não sabia o que dizer…

A sombra continuou a galgar a planície em direcção à montanha ao fundo e àquela hora, a luz ainda nos conseguia devolver os seus contornos, a cor, o silêncio. Escrever naquele momento, ainda que imbuído de toda a tranquilidade que pudesse desejar, roubar-me-ia a centelha de vida que pretendia prolongar, distrair-me-ia da simplicidade daquele sentir. As palavras viriam depois mas eu sabia ser impossível juntá-las dias ou semanas mais tarde para reproduzir o que estava a viver.

Estávamos no crepúsculo do quinto dia e o Thorsten diria mais tarde que as pessoas nunca pensam no pôr-do-sol a nascente. Concordo: é na luz que se derrama e não na que encandeia que está a beleza.

Esqueci-me de fotografar.

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